Era março de 1959 quando a Barbara Millicent Roberts de plástico, com batom vermelho, tamancos pretos e maiô listrado, irrompeu no mundo. Vendida por aproximadamente três dólares, era fruto de encomenda remetida no ano anterior ao designer Jack Ryan pelos empresários Elliot e Ruth Handler, donos da fábrica de brinquedos Mattel. Cabelos lisos, lábios finos, quadris estreitos, busto saliente. Foi a predileção da homônima humana da Barbie - a pequena herdeira dos Handler - por bonecas de papel cujo figurino era permutável, que catapultou a gênese do brinquedo.
Em cinco anos, sua principal concorrente e fonte de inspiração, a europeia Bild Lilli - a primeira a romper a hegemonia das bonecas em formato de bebês, baseada em personagem de quadrinho alemão com piadas picantes - saiu de circulação: as inegáveis semelhanças levaram a Mattel a adquirir da O Hausser, fabricante da Lilli, os direitos sobre a personagem. Os 340 mil exemplares vendidos na primeira tiragem da Barbie, número expressivo para a época, prenunciavam sua popularidade. Reinventada este ano em três novos tipos de corpo, sete tons de pele, 22 cores de olhos e 24 variações de cabelos e penteados, além do modelo tradicional em circulação, a boneca acumula quase seis décadas de fama - amada por muitos, odiada por outros tantos - em trajetória atrelada diretamente à cultura pop.
Audrey Hepburn, Cher, Marilyn Monroe, Elvis Presley, Madonna e personagens resgatados de produções como Família Adams, Liga da Justiça, Família Monstro, E o vento levou, Grease: nos tempos da brilhantina, O mágico de Oz, Senhor dos anéis, Os pássaros, Scooby Doo, Arquivo X, Os Flinstones, Star Trek, Alice no país das maravilhas, Mary Poppins e, mais recentemente, Mad men emprestaram referências à bonequinha de luxo de 29 cm ao longo do tempo. A idade não-revelada facilita a metamorfose pautada por ícones do pop: nos anos 2000, por exemplo, as medidas do busto foram reduzidas, espelhando as pop stars idolatradas por pré-adolescentes do início do milênio, como Britney Spears e as Spice Girls.
Da alta-costura, a Barbie granjeou indumentárias sob medida de grifes como Versace, Dior, Chanel, Givenchy, Donna Karan, Armani e Carolina Herrera, além de figurinos assinados pelos brasileiros Lino Villaventura, Walter Rodrigues e Alexandre Herchcovitch. Ao completar 50 anos, ganhou desfile na Semana de Moda de Nova York com modelos em tamanho real. Sophia Webster, Patrícia Bonaldi e a grife Moschino criaram, nos últimos anos, coleções inspiradas no estilo da boneca - todas bem sucedidas aos olhos da crítica especializada, especialmente aquela assinada por Jeremy Scott (Moschino) em 2014.
Multifacetada, a queridinha da América - ilustrada nos anos 1980 por ninguém menos que Andy Warhol, figura maior do movimento pop art - dribla a passagem do tempo, conserva gerações de fãs. No mês passado, com atraso mas não sem glória, a Barbie reanimou seu status de trendsetter: com novas medidas, tons de pele e tipos de cabelo, estampou capa da Time com pergunta de aura feminista - "Podemos parar de falar do meu corpo?" -, em versões alta, baixinha e curvilinea, na tentativa de reaver a aura de empoderamento feminino atribuída à sua gênese. "Antigamente, a Barbie incomodava porque era símbolo de liberdade", declarou recentemente a curadora francesa Anne Monier em entrevistas, durante abertura de exposição majestosa dedicada à boneca no Musée des Arts Décoratifs, em Paris - em cartaz até setembro, ancorada nos novos lançamentos.
Isso porque nos anos 1950, enquanto conquistava o mercado lançando mão de roupas e acessórios cambiáveis, a Barbie selou contribuição política: contrariava paradigmas da primeira metade do século 20, quando as meninas brincavam de desempenhar o papel das mães, simulando tarefas domésticas e cuidados com os filhos, funções sociais primordiais das mulheres daquela época. Um ano depois de lançada, a boneca já circulava no modelo Estilista de moda, sua primeira atuação profissional. Nas décadas seguintes, se tornaria, ainda, aeromoça, astronauta (quatro anos antes de o primeiro homem pisar na Lua), jornalista, veterinária, professora, chef de cozinha, modelo, fotógrafa, odontóloga e candidata à presidência dos Estados Unidos. Em 57 anos, foram mais de 150 ocupações.
"A Barbie ganha diversas profissões, vendendo a concepção de que a menina pode ;ser tudo o que quiser ser;, porém, sem perder de vista que o sucesso é sinônimo de poder e dinheiro para consumir", expõe, contudo, a pesquisadora paulista Fernanda Roveri, professora e doutora em Educação, na pesquisa Barbie na educação de meninas: do rosa ao choque. Para Roveri, o consumismo e o reforço a padrões de beleza praticamente inalcansáveis - na Austrália, investigadores concluíram que a probabilidade de alguém envergar a estrutura corporal da Barbie é de uma em cada cem mil pessoas - incitam nas crianças a supervalorização da estética feminina.
"É preciso adquirir um corpo rígido, plástico, tóxico, de Barbie: abrigar em si o silicone, o botox e, se preciso, até formol nos cabelos para alisá-los;, observa no estudo. Nas últimas décadas, itens acessórios ajudaram a vilanizar a boneca: uma balança que marcava os "ideais" 50Kg e um livro de dietas que instruía: "não coma nada".
A Mattel contrapõe. "A boneca tem inspirado garotas de todas as idades a sonhar, ;viajar; e descobrir que, brincando, elas podem ser o que quiserem. O estilo de vida da boneca, que já virou personalidade, sempre fez com que ela fosse popular entre crianças e adultos", informa a descrição oficial designada pela empresa à Barbie. À revelia de muitos e sob os aplausos de tantos outros, é fato que a Barbie figura no hall dos ícones pop: tem estrela própria na Calçada da Fama de Hollywood e, como qualquer celebridade moderna, cultiva séquito de fãs nas redes sociais - no Instagram, 1,4 milhão acompanham o perfil @barbiestyle. Entre a leitura da primeira linha desse texto e esta, foram vendidas, possivelmente, algumas centenas de bonecas - segundo a Mattel, duas delas são adquiridas por segundo. Como prevê o estereotipo da garota popular norte-americana, Barbie não liga a mínima se você a detesta.
[SAIBAMAIS]ENTREVISTA: Nuta Vasconcellos, pesquisadora formada em estilismo e coordenação de moda, jornalista e autora do blog GWS, dedicado ao empoderamento feminino
"Acho que a criação da boneca em si já é uma forma de encorajar mulheres."
Como a boneca Barbie contribuiu para consolidar um padrão de beleza inalcansável para a maioria das mulheres?
Acredito que a Barbie, esteticamente falando, foi só um espelho do que sempre foi massacrado na mídia do ideal de beleza feminino. A estética da boneca, sempre foi um reflexo da sociedade. Culpar a Barbie por um padrão que foi estabelecido pela mídia como um todo, não seria justo, claro, que ela tem sua parcela mas a Barbie não foi só negativa para as mulheres.
Acreditam que a boneca tenha contribuído, sob outro ponto de vista, para encorajar as meninas a seguirem carreiras profissionais no mercado de trabalho, numa época em que a maioria das mães eram donas de casa?
Acho que a criação da boneca em si já é uma forma de encorajar mulheres. A criadora da Barbie, que construiu um império, era mulher e isso já seria incrível pra época. A Barbie também é a personagem principal do seu universo, sendo que na época, a maioria das mulheres eram parte da história de algum personagem masculino. Em 1959, a Barbie era protagonista da sua própria história. Importante falar que naquele tempo, ela foi revolucionária porque até então, os brinquedos para meninas se resumiam a "bonecas bebes"ou seja, o papel da mulher se resumia a "brincar"de ser mãe e dona de casa. A Barbie tinha vida própria e isso em si, já era incrível pra época. Acho que a personalidade da Barbie, pode ser representada por uma mulher que foi bem sucedida em um mundo governado por homens.
Em linhas gerais, como esses padrões afetam a liberdade das mulheres?
Construir um padrão estético não faz bem para nenhuma mulher. Porque todas nós estamos em constante mutação. As novas envelhecem, magras, engordam... você nunca vai preencher todos os requisitos do que é considerado belo. A importância de quebrar os padrões é mostrar principalmente para jovens garotas que não existe só um jeito de ser bonita. A beleza tem várias cores, tamanhos, idade, cabelos... É a autoestima de milhões de meninas que está em jogo.
Ícones como a Barbie ditam tendências na cultura pop ou são mais influenciados pelos artistas e comportamentos da cultura pop? Quem influencia quem?
Acredito que a Barbie acompanha as tendências da mídia. Tanto que a Barbie nunca foi tão feminista, justamente porque ela acompanha o momento da mídia e da sociedade. Os novos modelos, com corpos de vários tipos e comerciais, provam isso.
Os novos modelos da boneca sinalizam uma democratização da moda e dos padrões de beleza em geral? Chegaram tarde ou ainda há tempo de cumprirem seu papel?
Nunca é tarde para repensar seus produtos e ideologias. Fico muito feliz que essa infância vai ter a diversidade que todas as anteriores mereciam.