Jornal Correio Braziliense

Diversão e Arte

Benjamin Moser mergulha nos enigmas de Clarice Lispector

Ele vem ao Brasil lançar coletânea de contos completos da escritora na Festa Literária Internacional de Paraty


Clarice Lispector ficou popular no Brasil, sobretudo, por causa das frases incansavelmente compartilhadas nas redes sociais. Em carta escrita a uma amiga, três anos antes antes de sua morte, ela disse, profética: ;Acordei com um pesadelo terrível: sonhei que ia para fora do Brasil (vou mesmo em agosto) e quando voltava ficava sabendo que muita gente tinha escrito coisas e assinava embaixo meu nome. Eu reclamava, dizia que não era eu, e ninguém acreditava, e riam de mim. Aí, não aguentei e acordei. Eu estava tão nervosa, elétrica e cansada que quebrei um copo;. Para o biógrafo da autora, Benjamin Moser, Clarice olhava além, era mística dentro da própria intelectualidade.

Moser vem ao Brasil para participar da Festa Literária Internacional de Paraty, que ocorre entre 29 de junho e 3 de julho, e trará mala recheada de temas ligados ao país, o principal deles é Clarice Lispector. O autor é responsável pela organização de Todos os contos, coletânea que reúne a obra preciosa da Clarice contista. A publicação, lançada no ano passado nos Estados Unidos, figurou a lista dos 100 livros mais notáveis de 2015, do jornal americano The New York Times. O livro também recebeu o prestigioso prêmio de tradução concedido pela Pen America. No Brasil, Todos os Contos será lançado em maio pela Rocco.
Além do livro de contos, Moser lançará uma nova edição da biografia Clarice,e o livro Autoimperialismo, sobre o Brasil. Um deles, é Cemitério da Esperança, já lançado em e-book, em que o pesquisador analisa o que ele chama de ;histórica destruição da cidade brasileira;, que ele considera estar relacionado ao atual momento político do país. Ao Diversão, Moser falou, não apenas sobre o encantamento que Clarice despertou internacionalmente, mas também sobre a maneira como os assuntos políticos do Brasil estão sendo vistos pelos estrangeiros.

Brasília
Eu vou à Flip para lançar três livros, o Todos os contos, da Clarice, que a gente publicou nos Estados Unidos, em 2015 e que foi um enorme sucesso no mundo, pode-se falar, porque não se restringiu aos Estados Unidos. Foi vendido para vários países, inclusive para o Brasil. Eu fico muito feliz com essa abertura. Vou lançar também a nova edição da biografia e um livro curto, que nasceu a partir de um ensaio que fiz sobre Brasília há um tempo, chamado o Cemitério da esperança. O Autoimperialismo, que é a história de como o Brasil se conquista pela arquitetura moderna e reúne três ensaios.

Mística moderna
Clarice sempre se envolvia com essa aura de mistério. Há várias explicações para isso, mas, para mim, a melhor é que ela estava conectada a uma realidade que não era a nossa cotidiana. Embora os contos tragam histórias de mulheres, em geral, de classe média do Rio de Janeiro, fazendo suas coisas, falando com empregada, indo ao supermercado. Essas coisas muito normais, que todo mundo faz, ao mesmo tempo está ligada a uma realidade além dessa vida cotidiana. E ela encontra uma maneira de unificar a pessoa normal, que ela também era, com uma sede de ir além do que a gente enxerga. É esse o mistério dela. Como ela podia entender a vida tão corriqueira e, ao mesmo tempo, ser uma das grandes místicas modernas? Realmente, ela era uma pessoa que olhava para o além.

Escrita sobrenatural
O Brasil adora essas coisas ligadas ao sobrenatural. Para mim, é muito normal ouvir de gente do Brasil, por causa do trabalho que eu tenho feito e pela minha conexão com Clarice, dizer ;Clarice sabe o que você está fazendo, Clarice gosta de você...; A gente não falaria isso na Europa e nos Estados Unidos, mas no Brasil é muito normal. E, nesse sentido, ir a cartomantes e tudo isso que ela fazia faz parte da brasilidade dela. Mas isso é diferente da coisa mística, mesmo. A dimensão mística também tem lado muito intelectualizado, que é o oposto da cartomante. Ela adorava cartomante, porque era curiosa. Porém, eu não gosto de confundir isso com misticismo dela, que era uma busca muito séria do significado do mundo, do porquê da morte, como experimentamos deus na nossa vida cotidiana, porque nascemos. Clarice tem esses dois lados, de mulher normal e de grande pensadora. Por isso a literatura dela nos leva ao mistério enraizado na vida. A gente sempre quer saber alguma coisa sobre nós mesmos e há muitas maneiras de procurar isso, há quem vá à cartomante, há quem se drogue, quem viaje na tentativa de sair da realidade. Clarice fazia isso pela palavra.

Críticas
Quando Via-crúcis do corpo foi lançado, recebeu muitas críticas. Um dos motivos é que ela escreveu o texto em três dias, começou em um sábado e entregou o livro na terça-feira. Foi um desafio lançado por um editor. O espantoso é que era o fim de semana do Dia das Mães e tem a história de violência que a mãe dela sofreu na Ucrânia e a morte por sífilis que foi uma coisa horrível. Morreu quando Clarice tinha 9 anos. A figura da mãe é muito central na obra da Clarice, mas, nesse livro, chamado de pornográfico, embora não fosse, é muito forte a obsessão pela imagem da mãe, pela violência sexual, pela morte. E não é a Clarice de Paixão segundo GH, é uma Clarice mais descontraída. Em 1974, quando foi publicado, o Brasil vivia um dos piores anos de ditadura militar, ela estava mandando para o inferno toda essa coisa. E a revista que chamou Clarice de lixo, foi a Veja, só para colocar no contexto que o Brasil muda e não muda. A gente estava, realmente, em um período de declínio cultural, que os artistas brasileiros estavam sendo atacados, como Chico Buarque, artistas saíram atacados pelas ruas de São Paulo. Foi um período obscuro da história do do país e o Via-crúcis do corpo era a maneira de Clarice de mandar tudo isso para o inferno e dizer ;eu faço do jeito que eu quero;.


Crise no Brasil
Quase todos os estrangeiros que têm vínculos com o Brasil, jornalistas, escritores, acadêmicos, pensam igual a mim. Até hoje não houve nenhuma matéria em nenhum país que acha uma boa o que está acontecendo no Brasil. O problema do Brasil não era Lula e o que veio com ele, sem dizer que são maravilhosos, porque não são. Mas acho que o que aconteceu no Congresso Nacional repercutiu muito mal internacionalmente. Para mim foi um golpe no meu trabalho de muitos anos para convencer as pessoas a olharem o Brasil como um país sério. Tudo o que representa Clarice Lispector para mim é o oposto de tudo isso. Eu não entendo muito de política, mas estão tentando tirar uma pessoa que foi escolhida por um processo democrático. Agora, está todo muito surpreendido em ver quem vai ficar no lugar dela. Isso me deixa muito pessimista. Sem comprara isso com 1964, que é uma coisa diferente, mas é uma fuga da realidade.

Clarice internacional
Divulgar um livro é uma campanha política. Quando eu comecei meu trabalho com Clarice, ninguém sabia quem ela era, além de uma pequena parte do mundo acadêmico profundamente especializado. O meu desafio era tirá-la disso e colocá-la em livros que alcançariam um público importante, que daria para Clarice o lugar que ela merece, no panorama da literatura moderna mundial. Publiquei a biografia, em 2009, que para mim foi uma apresentação de quem era Clarice Lispector; depois, publicamos cinco dos romances e o Todos os contos. A cada publicação o público aumentava aos poucos. Eu era o estrategista de uma campanha para o público chegar a ela. Aos poucos, a gente foi ampliando o círculo de leitores de Clarice, e não só nos círculos intelectuais. Fora isso, o livro foi chegando a outros países, como a Turquia, na Coreia, na França, na Alemanha. É como lançar uma pedra em um lago e os círculos vão expandindo com a pedra lançada e isso tem sido uma enorme alegria para mim.