Rio de Janeiro, junho de 1915. No intervalo das aulas da Escola Normal, uma das alunas decide declamar um soneto de Olavo Bilac e é repreendida pelo inspetor de alunos. Depois, pelo diretor - um alemão linha-dura. A situação fica tensa. A bronca é mais ríspida que o aceitável, há ameaça de castigo, e as alunas saem em defesa da colega.
Um escândalo. O assunto vai parar na mesa de jantar, nos jornais. E, na edição de 19 de junho de O Século, o nome da garota Cecília Meirelles (mais tarde ela tiraria um ;l; do sobrenome) aparece na primeira página.
Aos 14 anos, ela, que nem sonhava que se tornaria uma das mais importantes escritoras brasileiras, tomou partido na briga escolar - uma briga por direitos e respeito - e foi intimada a depor na gabinete de Azevedo Sodré, diretor geral da Instrução Pública do Distrito Federal. As normalistas ganharam o apoio dos estudantes de Medicina e, juntos, foram até o Palácio do Catete para marcar posição.
história é lembrada por Ulisses Infante, professor de literatura da Unesp de São José do Rio Preto, e mostra que alguns assuntos, como a questão do direito das mulheres, sempre foram caros à poeta - uma das fundadoras da Legião da Mulher Brasileira.
Infante se deparou com essa passagem há cerca de dois meses, enquanto pesquisava na Hemeroteca Digital, da Biblioteca Nacional, informações sobre a primeira viagem da poeta à Portugal, em 1934. E encontrou um poema que desconhecia: Rimance das Donas de Portugal. Pesquisou mais e descobriu que este poema narrativo, publicado em 31 de outubro de 1931, na revista Lusitania, da colônia portuguesa no Rio, nunca havia sido incluído em nenhuma coletânea.
O texto a que o jornal O Estado de S.Paulo teve acesso com exclusividade, e que será tema de artigo científico de Infante, foi escrito após Cecília ter sido convidada a participar da Festa do Minho. Na ocasião, ela declamou o poema.
Em Rimance das Donas de Portugal, a poeta evoca as figuras históricas do país. "Neste percurso, ela faz ponderações sobre o amor, o destino, a relação da pessoa com o momento - no caso de Portugal, as navegações - e o que isso acabou acarretando para os destinos individuais. No fim do poema, ela fala também às mulheres humildes, que é o caso dela", explica Infante.
Até onde o professor pode apurar, este é o primeiro poema narrativo que ela escreve. "E isso é importante porque em 1953 ela lança Romanceiro da Inconfidência, no qual toma essa forma poética e reprocessa num trabalho fantástico de narrar e meditar ao mesmo tempo. O Romanceiro é um texto de muita ponderação sobre o sentido da história e das atitudes humanas", diz.
Ulisses Infante considera que este poema encontrado agora não vai mudar a significado da obra de Cecília Meireles, já que ele é irregular - um misto de lugar comum e momentos felizes.
Entre esses achados, ele cita: "Donas mórbidas, vestindo / Seus trajes de cemitério. / E pondo um sorriso lindo / - Para fazer mais infindo - / Sobre o seu grande mistério...". Ele explica que neste trecho ela mimetiza o estilo dos românticos. E continua: "Donas de pálido rosto. / De violáceas olheiras, / Contemplando no sol posto, / Tecer-se o véu do desgosto / Pelas nuvens - fiandeiras... Isso já é Cecilia Meireles como a reconhecemos hoje".
Outro momento feliz: "D. Filipa descerra, / Do alto, a nova dinastia, / Que após os feitos de guerra,/ Há de sonhar algum dia / Com a forma oculta da terra". "Aqui ela lembra o Fernando Pessoa de Mensagem, mas não posso dizer que é influência dele porque o livro ainda não havia sido publicado. Talvez seja uma afinidade", diz.
Para o pesquisador, o poema tem uma importância também com relação ao protagonismo feminino na história. "Ela nunca foi uma militante feminista no sentido de estar engajada, mas pela ação é uma mulher protagonista. Esse poema tem muito a ver com isso e justifica o que ela foi fazer naquele centro de imigrantes: falar como mulher, para mulher, numa linha de trabalho que ela vinha fazendo há algum tempo."
Ele, no entanto, não se sente confortável quando a classificam como feminista. "Ela teve alguns arranca-rabos com as feministas. Numa crônica de educação ela critica as feministas porque elas lançaram um manifesto pedindo doações para as meninas e ela achava um absurdo porque os meninos também precisavam de ajuda."
Na obra de Cecília Meireles, são encontrados vários poemas de circunstância, como Infante classifica este descoberto agora e outros, como Saudação à Menina de Portugal, escrito na passagem da Miss Portugal pelo Brasil, e o poema para o 4.; Centenário do Rio (ela morreu antes de terminar). "É a poesia de quem nunca deixou de pensar o texto poético como um meio de sociabilidade. Não podemos nos esquecer de que ela cresceu num mundo onde os saraus eram comuns."