Nahima Maciel
postado em 15/12/2015 07:30
Em 2012, o português José Luis Peixoto deu um jeito de integrar um dos raros grupos de turistas a visitar a Coreia do Norte com autorização oficial. Pode parecer um ponto totalmente fora da curva para um escritor cujos romances têm raiz no mundo rural português e na investigação das relações entre o contemporâneo e as tradições. Na Coreia do Norte, no entanto, Peixoto encontrou algo familiar: uma tradição congelada, à força, no tempo e no espaço. A viagem deu origem ao livro Dentro do segredo, um relato sobre uma visita a um dos países mais fechados do globo.
No ano passado, Peixoto retornou à estratégia de falar do local para refletir sobre o universal, um recurso constante em sua obra. Galveias, lançado em Brasília em novembro, leva no título o nome da aldeia natal do autor, um ponto de referência para falar de um mundo no qual o passado é constantemente confrontado com o presente. O escritor já havia falado de Galveias no romance anterior, Livro, assim como explorou a dicotomia tradição-modernidade em Cemitério de pianos. É uma equação inevitável, Peixoto acredita, e a literatura portuguesa gosta do tema; ao contrário do Brasil, cujo mundo rural está quase ausente da literatura contemporânea.
A proximidade entre a literatura brasileira e a de língua portuguesa é inevitável, mesmo se, em termos de temáticas, elas estejam um tanto distantes. Autores como Peixoto e Valter Hugo Mae têm um enlace particular com o confronto entre a contemporaneidade e a tradição no Portugal de hoje. Mia Couto, José Eduardo Agualusa e Miguel Sousa Tavares tratam de um mundo ainda conectado com o universo colonial. Gonçalo M. Tavares tem uma queda pelo surrealismo e, não à toa, é chamado de o ;Kafka português;, e Inês Pedrosa mergulha nos sentimentos e psicologia dos personagens. Todos têm uma quantidade significativa de fãs brasileiros e efetivam um diálogo que Peixoto considera fundamental para o intercâmbio literário. Ele mesmo já esteve no Brasil três vezes apenas este ano. ;Quando olhamos para esse intercâmbio achamos sempre que ainda podia ser feito mais e que há muitos autores que mereciam atravessar esse Atlântico. Mas é verdade que, desde a primeira vez que vim ao Brasil, há 12 anos, sinto que foi feito um grande caminho de aproximação nessa área da literatura;, repara. Em entrevista durante a passagem por Brasília, Peixoto falou sobre tendências na literatura portuguesa, crise mundial, imigração e o papel da escrita nesse cenário.
No ano passado, Peixoto retornou à estratégia de falar do local para refletir sobre o universal, um recurso constante em sua obra. Galveias, lançado em Brasília em novembro, leva no título o nome da aldeia natal do autor, um ponto de referência para falar de um mundo no qual o passado é constantemente confrontado com o presente. O escritor já havia falado de Galveias no romance anterior, Livro, assim como explorou a dicotomia tradição-modernidade em Cemitério de pianos. É uma equação inevitável, Peixoto acredita, e a literatura portuguesa gosta do tema; ao contrário do Brasil, cujo mundo rural está quase ausente da literatura contemporânea.
A proximidade entre a literatura brasileira e a de língua portuguesa é inevitável, mesmo se, em termos de temáticas, elas estejam um tanto distantes. Autores como Peixoto e Valter Hugo Mae têm um enlace particular com o confronto entre a contemporaneidade e a tradição no Portugal de hoje. Mia Couto, José Eduardo Agualusa e Miguel Sousa Tavares tratam de um mundo ainda conectado com o universo colonial. Gonçalo M. Tavares tem uma queda pelo surrealismo e, não à toa, é chamado de o ;Kafka português;, e Inês Pedrosa mergulha nos sentimentos e psicologia dos personagens. Todos têm uma quantidade significativa de fãs brasileiros e efetivam um diálogo que Peixoto considera fundamental para o intercâmbio literário. Ele mesmo já esteve no Brasil três vezes apenas este ano. ;Quando olhamos para esse intercâmbio achamos sempre que ainda podia ser feito mais e que há muitos autores que mereciam atravessar esse Atlântico. Mas é verdade que, desde a primeira vez que vim ao Brasil, há 12 anos, sinto que foi feito um grande caminho de aproximação nessa área da literatura;, repara. Em entrevista durante a passagem por Brasília, Peixoto falou sobre tendências na literatura portuguesa, crise mundial, imigração e o papel da escrita nesse cenário.
>> entrevista José Luis Peixoto
O Brasil tem uma relação de proximidade com a literatura de língua portuguesa. Você sente essa mesma reação em Portugal em relação à literatura brasileira? Está satisfeito com o intercâmbio?
Quando olhamos para esse intercâmbio achamos sempre que ainda podia ser feito mais e que há muitos autores que mereciam atravessar esse Atlântico. Mas é verdade que, desde a primeira vez que vim ao Brasil, há 12 anos, sinto que foi feito um grande caminho de aproximação nessa área da literatura. Hoje em dia, há autores que são até muito publicados e aguardados aqui e o mesmo acontece com alguns autores brasileiros em Portugal. Essa grande difusão de encontros literários contribui bastante para que os autores se dessem a conhecer ao público e até uns aos outros, na medida em que também é muito importante para quem escreve conhecer aquilo que é escrito na língua portuguesa.
Que pontos diferenciam muito nossas literaturas, apesar da língua em comum? Há ainda uma forte melancolia na literatura portuguesa contemporânea?
Acredito que a literatura portuguesa, apesar do grande contato intercultural que os países estão sujeitos hoje, transporta um pouco dessa cultura. Se existem esses tons de melancolia é porque também fazem parte da própria cultura portuguesa num âmbito mais amplo. Ainda assim, sob um ponto de vista estético, sinto que a diversidade das propostas é enorme, tanto em Portugal quanto no Brasil, que é um país gigante e onde existem múltiplas realidades. E talvez por falta de distância sinto uma certa dificuldade em responder a essa questão. Sinto que uma avaliação daquilo que é a literatura portuguesa hoje em dia, assim como o que é a literatura brasileira, vai ser feita no futuro.
Por que essa questão do interior versus o contemporâneo é tão presente na literatura portuguesa de hoje?
Esse tema surge porque ele faz parte da realidade de Portugal. Portugal, sendo um país pequeno em superfície, tem de fato duas realidades muito vincadas que são aquelas do espaço rural nomeadamente no interior do país e do espaço urbano, onde estão as cidades. Essa dicotomia, de alguma forma, até caracteriza um pouco o Portugal contemporâneo, um país que, a partir dos anos 1970, começou a sair de uma realidade muito rural e começou a abrir-se ao mundo e a encontrar um lugar justamente nesse confronto. É uma cultura próxima da realidade e com aspectos muito próprios, isolada de outras culturas que, de repente, se vê contraposta a uma cultura de massas presente um pouco por todo lado. Isso, para um escritor, acaba por ser um tema muito apetecível. Com todas as questões que coloca e tenta responder, tem uma que está sempre por baixo de todas as outras, que é a pergunta das perguntas, a mais elementar e central de todas e que se refere à identidade, que é a pergunta ;Quem sou?;. E acredito que, em Portugal, para responder a essa pergunta hoje em dia, a ruralidade e esses aspectos da cultura mais tradicional são pertinentes e fazem sentido, apesar de a realidade portuguesa ser composta por múltiplas nuances.
É curioso porque esse tema do interior é bastante raro na literatura contemporânea brasileira;
E no entanto, o Brasil tem uma realidade rural também muito forte e importante. Mas sinto que no caso do Brasil isso tem a ver com a dificuldade de acesso por parte das pessoas que conhecem essa realidade aos meios de difusão de seu trabalho, porque existe uma cultura rural no Brasil muito forte, com especificidades próprias de cada estado e de cada lugar. No entanto, é um país muito polarizado em alguns meios que são aqueles onde está presente a grande maioria das possibilidades de edição e de difusão do trabalho cultural. Fico sempre muito surpreendido nas viagens que faço pelo Brasil com a qualidade de autores que não são publicados, ou são publicados por editoras regionais e estaduais e que muitas vezes têm dificuldade de passar as fronteiras da sua cidade ou do seu estado. Isso também decorre do fato de se tratar de um país continental em que a maioria dos estados têm dimensões de países europeus.
Como Portugal vê a questão dos refugiados? Vocês mesmos passaram por um momento dramático para o país em que houve uma leva grande de imigrantes para a França, nos anos 1970;
O país encara essa discussão de uma forma muito acesa e em posições que podem ser até bastante extremada. Portugal é, há muitos anos, um país de imigrantes em que muita gente tem saído em busca de uma vida melhor, se trata de um país que compreende bem o desespero e o direito de procurar uma vida melhor e sobrevivência. Nessa medida, sinto que também a Europa, em função daqueles que são os seus valores, deverá ter uma resposta coletiva a essa situação, não deixar essa questão apenas na mão dos países que são os que fazem fronteira física com esses caminhos dos refugiados. E procurar uma resposta que seja solidária e humana.
Você não acha que pode haver um retrocesso quanto aos refugiados por conta dos atentados em Paris?
Espero que não. Espero que não seja assim, porque não me parece que seja essa a situação. Para questões como as que acontecem neste momento na Síria e que envolvem o Estado Islâmico e todo esse território é fundamental que haja uma resposta internacional concertada e que, de alguma forma, se consiga fazer face a um problema como esse compreendendo que nos afeta a todos e não somente àquela população. Problemas como este, se não fizermos nada, não tendem a se resolver sozinhos e sim a piorar. Casos como esse de Paris chegam a por em causa toda nossa civilização e os avanços civilizacionais que achávamos que tínhamos alcançado.
Portugal teve uma onda de imigração grande de mão de obra barata para a França nos anos 1960 e 1970. A geração nascida dessa leva se integrou bastante bem à sociedade francesa. Os árabes passaram por uma onde migratória semelhante em relação à França, com o acréscimo da questão colonial. No entanto, a geração nascida desse moviment não conseguiu se integrar. É possível fazer um paralelo entre essas duas situações? Como você, que é herdeiro de uma geração que fez esse movimento, entende o que está acontecendo na França?
Nada justifica atos como os de Paris, não há qualquer hipótese de justificar esses atos. Ainda assim, sinto que, em alguns aspectos, países como a França, entre outros, ganhariam muito com uma revisão da forma como integraram as diversas comunidades que constituem. Não é de hoje que existem, na França, grandes conflitos étnicos e entre comunidades com base na sua origem. Acredito que situações como essa não ajudam em nada para que exista alguma integração e um bem-estar coletivo. Seguramente, também não são formas muito adequadas de evitar atos criminosos como estes. Ainda assim, também não encontro qualquer espécie de justificação para que aconteça o que aconteceu.
Quanto tempo você acha que a literatura leva para amadurecer esse tipo de situação e falar sobre isso?
A literatura requer sempre uma reflexão e essa reflexão dura o tempo que for necessário. Neste momento parece-me muito cedo para a literatura poder se pronunciar com propriedade sobre acontecimentos como esse. Esta é a hora ainda do jornalismo, porque o jornalismo trata do hoje, do agora. O jornalismo trata da novidade que vai reformando o tempo. A literatura tenta falar de algo que consigamos identificar com clareza e identifica ali elementos que façam parte da natureza humana de algo que era assim e que continuará a ser assim. A literatura, ao contrário do jornalismo, tem a pretensão de perdurar no tempo e até de atravessar culturas, atravessar espaços, poder ser lida em um país e em outro completamente diferente e continuar a fazer sentido. Nessa medida, não sei quantificar exatamente o tempo que poderá faltar para que essa reflexão exista, mas vejo que estes acontecimentos, apesar de serem recentes, não têm uma raiz de agora. É possível traçar uma relação com o 11 de setembro ou com outros momentos que foram acontecendo ao longo do tempo e que, de algum modo, fazem parte dessa mesma sequência. Agora, sinto que é necessário uma reflexão profunda e que essa reflexão não tenha medo de, em alguns momentos, pôr a nós próprios em causa e perceber que há algumas coisas que temos que mudar na nossa própria conduta, apesar de sermos todos vítimas de crimes horríveis como esse.
Quais coisas deveriam mudar?
Não consigo fazer essa reflexão objetiva, mas sinto que nada é absolutamente espontâneo. Podemos tentar minimizar as consequências dos acontecimentos e procurarmos alguma justiça, no entanto, para encontrarmos soluções que sejam duradouras e que realmente eliminem o problema temos de ir àquilo que lhes deu origem, não exatamente às consequências do problema. E naquilo que lhe deu origem, penso que estará este conflito que existe sobretudo na cabeça de radicais dispostos a atos de uma natureza tão reprovável como essa.
Portugal passou por uma crise, a Grécia também. Nossos modelos estão falidos, é preciso mudar paradigmas?
Sinto que essas crises cíclicas, que não são novas, muitas vezes colocam em causa aspectos que passamos, há algum tempo, a dar por garantidos. Quando tudo melhora, é fácil habituarmo-nos. E depois, quando perdemos essas regalias, percebemos que, afinal, é possível regredir. Acredito na história não como algo que tem uma evolução permanente, mas que tem momentos de regressão em que perdemos avanços que tivemos anteriormente. A imperfeição faz parte do ser humano e é isso que o caracteriza. Quando é perfeito, então não é humano. E nessa medida sinto que vamos sempre encontrar imperfeições na nossa forma de viver e de difundir conceitos como a liberdade, a igualdade ou condições de vida que possam agradar a todos. Ainda assim, nossa ambição tem que ser a de uma liberdade plena e efetiva, uma igualdade de direitos e deveres que seja justa. Nessa medida, sinto que há algumas lacunas evidentes no meio econômico e na própria democracia que precisam ser aperfeiçoadas e que todos devem ter a humildade de reconhecer e trabalhar efetivamente para que elas sejam superadas. Sinto que, muitas vezes, a partir de certa altura, o debate político não é efetivamente um debate, é mais uma disputa de argumentos em que nenhuma das partes está disposta a ceder. E quando é assim, é uma perda de tempo porque se ninguém está disposto a ceder absolutamente nada, qual o sentido?
Qual o papel da literatura nisso?
A literatura é uma memória, uma consciência coletiva, e tem esse poder de digerir um pouco o tempo e sintetizar alguns dos aprendizados que coletivamente se vão fazendo. Ainda assim, essa reflexão também pode passar pela provocação em alguns momentos, porque a literatura sendo uma forma de comunicação que normalmente se dirige ao indivíduo tem também um papel coletivo na medida em que um livro, espera-se, será sempre lido por um grupo de pessoas homogêneo ou heterogêneo e, de alguma forma, passará a fazer parte da experiência e a influenciar a sua maneira de ver o mundo. Por isso a literatura tem um papel importante para construir a memória. E a memória é um dos aspectos mais elementares na hora de procurarmos saber quem somos.
Que pontos diferenciam muito nossas literaturas, apesar da língua em comum? Há ainda uma forte melancolia na literatura portuguesa contemporânea?
Acredito que a literatura portuguesa, apesar do grande contato intercultural que os países estão sujeitos hoje, transporta um pouco dessa cultura. Se existem esses tons de melancolia é porque também fazem parte da própria cultura portuguesa num âmbito mais amplo. Ainda assim, sob um ponto de vista estético, sinto que a diversidade das propostas é enorme, tanto em Portugal quanto no Brasil, que é um país gigante e onde existem múltiplas realidades. E talvez por falta de distância sinto uma certa dificuldade em responder a essa questão. Sinto que uma avaliação daquilo que é a literatura portuguesa hoje em dia, assim como o que é a literatura brasileira, vai ser feita no futuro.
Por que essa questão do interior versus o contemporâneo é tão presente na literatura portuguesa de hoje?
Esse tema surge porque ele faz parte da realidade de Portugal. Portugal, sendo um país pequeno em superfície, tem de fato duas realidades muito vincadas que são aquelas do espaço rural nomeadamente no interior do país e do espaço urbano, onde estão as cidades. Essa dicotomia, de alguma forma, até caracteriza um pouco o Portugal contemporâneo, um país que, a partir dos anos 1970, começou a sair de uma realidade muito rural e começou a abrir-se ao mundo e a encontrar um lugar justamente nesse confronto. É uma cultura próxima da realidade e com aspectos muito próprios, isolada de outras culturas que, de repente, se vê contraposta a uma cultura de massas presente um pouco por todo lado. Isso, para um escritor, acaba por ser um tema muito apetecível. Com todas as questões que coloca e tenta responder, tem uma que está sempre por baixo de todas as outras, que é a pergunta das perguntas, a mais elementar e central de todas e que se refere à identidade, que é a pergunta ;Quem sou?;. E acredito que, em Portugal, para responder a essa pergunta hoje em dia, a ruralidade e esses aspectos da cultura mais tradicional são pertinentes e fazem sentido, apesar de a realidade portuguesa ser composta por múltiplas nuances.
É curioso porque esse tema do interior é bastante raro na literatura contemporânea brasileira;
E no entanto, o Brasil tem uma realidade rural também muito forte e importante. Mas sinto que no caso do Brasil isso tem a ver com a dificuldade de acesso por parte das pessoas que conhecem essa realidade aos meios de difusão de seu trabalho, porque existe uma cultura rural no Brasil muito forte, com especificidades próprias de cada estado e de cada lugar. No entanto, é um país muito polarizado em alguns meios que são aqueles onde está presente a grande maioria das possibilidades de edição e de difusão do trabalho cultural. Fico sempre muito surpreendido nas viagens que faço pelo Brasil com a qualidade de autores que não são publicados, ou são publicados por editoras regionais e estaduais e que muitas vezes têm dificuldade de passar as fronteiras da sua cidade ou do seu estado. Isso também decorre do fato de se tratar de um país continental em que a maioria dos estados têm dimensões de países europeus.
Como Portugal vê a questão dos refugiados? Vocês mesmos passaram por um momento dramático para o país em que houve uma leva grande de imigrantes para a França, nos anos 1970;
O país encara essa discussão de uma forma muito acesa e em posições que podem ser até bastante extremada. Portugal é, há muitos anos, um país de imigrantes em que muita gente tem saído em busca de uma vida melhor, se trata de um país que compreende bem o desespero e o direito de procurar uma vida melhor e sobrevivência. Nessa medida, sinto que também a Europa, em função daqueles que são os seus valores, deverá ter uma resposta coletiva a essa situação, não deixar essa questão apenas na mão dos países que são os que fazem fronteira física com esses caminhos dos refugiados. E procurar uma resposta que seja solidária e humana.
Você não acha que pode haver um retrocesso quanto aos refugiados por conta dos atentados em Paris?
Espero que não. Espero que não seja assim, porque não me parece que seja essa a situação. Para questões como as que acontecem neste momento na Síria e que envolvem o Estado Islâmico e todo esse território é fundamental que haja uma resposta internacional concertada e que, de alguma forma, se consiga fazer face a um problema como esse compreendendo que nos afeta a todos e não somente àquela população. Problemas como este, se não fizermos nada, não tendem a se resolver sozinhos e sim a piorar. Casos como esse de Paris chegam a por em causa toda nossa civilização e os avanços civilizacionais que achávamos que tínhamos alcançado.
Portugal teve uma onda de imigração grande de mão de obra barata para a França nos anos 1960 e 1970. A geração nascida dessa leva se integrou bastante bem à sociedade francesa. Os árabes passaram por uma onde migratória semelhante em relação à França, com o acréscimo da questão colonial. No entanto, a geração nascida desse moviment não conseguiu se integrar. É possível fazer um paralelo entre essas duas situações? Como você, que é herdeiro de uma geração que fez esse movimento, entende o que está acontecendo na França?
Nada justifica atos como os de Paris, não há qualquer hipótese de justificar esses atos. Ainda assim, sinto que, em alguns aspectos, países como a França, entre outros, ganhariam muito com uma revisão da forma como integraram as diversas comunidades que constituem. Não é de hoje que existem, na França, grandes conflitos étnicos e entre comunidades com base na sua origem. Acredito que situações como essa não ajudam em nada para que exista alguma integração e um bem-estar coletivo. Seguramente, também não são formas muito adequadas de evitar atos criminosos como estes. Ainda assim, também não encontro qualquer espécie de justificação para que aconteça o que aconteceu.
Quanto tempo você acha que a literatura leva para amadurecer esse tipo de situação e falar sobre isso?
A literatura requer sempre uma reflexão e essa reflexão dura o tempo que for necessário. Neste momento parece-me muito cedo para a literatura poder se pronunciar com propriedade sobre acontecimentos como esse. Esta é a hora ainda do jornalismo, porque o jornalismo trata do hoje, do agora. O jornalismo trata da novidade que vai reformando o tempo. A literatura tenta falar de algo que consigamos identificar com clareza e identifica ali elementos que façam parte da natureza humana de algo que era assim e que continuará a ser assim. A literatura, ao contrário do jornalismo, tem a pretensão de perdurar no tempo e até de atravessar culturas, atravessar espaços, poder ser lida em um país e em outro completamente diferente e continuar a fazer sentido. Nessa medida, não sei quantificar exatamente o tempo que poderá faltar para que essa reflexão exista, mas vejo que estes acontecimentos, apesar de serem recentes, não têm uma raiz de agora. É possível traçar uma relação com o 11 de setembro ou com outros momentos que foram acontecendo ao longo do tempo e que, de algum modo, fazem parte dessa mesma sequência. Agora, sinto que é necessário uma reflexão profunda e que essa reflexão não tenha medo de, em alguns momentos, pôr a nós próprios em causa e perceber que há algumas coisas que temos que mudar na nossa própria conduta, apesar de sermos todos vítimas de crimes horríveis como esse.
Quais coisas deveriam mudar?
Não consigo fazer essa reflexão objetiva, mas sinto que nada é absolutamente espontâneo. Podemos tentar minimizar as consequências dos acontecimentos e procurarmos alguma justiça, no entanto, para encontrarmos soluções que sejam duradouras e que realmente eliminem o problema temos de ir àquilo que lhes deu origem, não exatamente às consequências do problema. E naquilo que lhe deu origem, penso que estará este conflito que existe sobretudo na cabeça de radicais dispostos a atos de uma natureza tão reprovável como essa.
Portugal passou por uma crise, a Grécia também. Nossos modelos estão falidos, é preciso mudar paradigmas?
Sinto que essas crises cíclicas, que não são novas, muitas vezes colocam em causa aspectos que passamos, há algum tempo, a dar por garantidos. Quando tudo melhora, é fácil habituarmo-nos. E depois, quando perdemos essas regalias, percebemos que, afinal, é possível regredir. Acredito na história não como algo que tem uma evolução permanente, mas que tem momentos de regressão em que perdemos avanços que tivemos anteriormente. A imperfeição faz parte do ser humano e é isso que o caracteriza. Quando é perfeito, então não é humano. E nessa medida sinto que vamos sempre encontrar imperfeições na nossa forma de viver e de difundir conceitos como a liberdade, a igualdade ou condições de vida que possam agradar a todos. Ainda assim, nossa ambição tem que ser a de uma liberdade plena e efetiva, uma igualdade de direitos e deveres que seja justa. Nessa medida, sinto que há algumas lacunas evidentes no meio econômico e na própria democracia que precisam ser aperfeiçoadas e que todos devem ter a humildade de reconhecer e trabalhar efetivamente para que elas sejam superadas. Sinto que, muitas vezes, a partir de certa altura, o debate político não é efetivamente um debate, é mais uma disputa de argumentos em que nenhuma das partes está disposta a ceder. E quando é assim, é uma perda de tempo porque se ninguém está disposto a ceder absolutamente nada, qual o sentido?
Qual o papel da literatura nisso?
A literatura é uma memória, uma consciência coletiva, e tem esse poder de digerir um pouco o tempo e sintetizar alguns dos aprendizados que coletivamente se vão fazendo. Ainda assim, essa reflexão também pode passar pela provocação em alguns momentos, porque a literatura sendo uma forma de comunicação que normalmente se dirige ao indivíduo tem também um papel coletivo na medida em que um livro, espera-se, será sempre lido por um grupo de pessoas homogêneo ou heterogêneo e, de alguma forma, passará a fazer parte da experiência e a influenciar a sua maneira de ver o mundo. Por isso a literatura tem um papel importante para construir a memória. E a memória é um dos aspectos mais elementares na hora de procurarmos saber quem somos.
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