O moleque magrelo que dançava break pelas ruas de terra do Guará não imaginava que se tornaria, anos depois, um dos principais representantes da cultura negra do país. Na escola, Genival Oliveira Gonçalves tinha vergonha do nome e escondia o rosto quando a professora lia a chamada na sala de aula. Cresceu e virou GOG, artista respeitado nacionalmente e apontado como referência por figuras consagradas como o poeta Sérgio Vaz, Lenine e Maria Rita.
Três décadas depois, ele esparra o nome completo ; sem recato e com orgulho ; na capa do 10; disco da carreira. Aproveita e convida parceiros dessa caminhada para reforçar o trabalho. Ellen Oléria, Dhi Ribeiro e Zeca Baleiro emprestam a voz, Hamilton de Holanda dedilha o bandolim e ainda sobra espaço para nomes jovens da cena, como DJ A, Richelmy Oliveira, Victor Victrola e Wellyngton Abreu.
[SAIBAMAIS] ;Andar com o cara é um privilégio. Uma fonte constante de conhecimento;, comenta o pernambucano Victor Victrola, que saiu de Recife há 15 anos. ;Mas já escutava GOG desde lá;, completa. O percussionista Richelmy Oliveira fortalece o discurso: ;Aprendo muito com o GOG e com o Genival. E tenho a honra de tê-los como amigo;.
Em entrevista ao Correio, o poeta do rap nacional justifica o título que lhe foi atribuído. Ao falar sobre racismo, periferia e música, faz poesia e nem percebe. Ora lírica, ora pungente. ;As pessoas cultas querem ocultar a cultura;, diz. GOG prefere semeá-la.
Ponto a ponto / GOG
Novo disco
Aproveito minhas andanças. É um trabalho diferente dos demais. Gravei álbuns em dois meses, quarenta dias. Dessa vez, foram cinco anos. Esperei a cadência da vida me mostrar o caminho. São 30 anos de estrada, meu décimo trabalho. Quis também perceber este novo cenário, a cena do hip-hop. Descobrir como continuar sendo oxigênio, fotossíntese desta geração.
Periféricos
Temos uma postura de enfrentamento com tudo que nos acontece. Motores potentes dessa transformação social. Nós podemos ser protagonistas da nossa jornada. O centro é o centro, a partir do momento que nos vemos como periféricos. Mas nós podemos ser o centro. Não somos problemáticos, mas temos problemas, e podemos ser matemáticos na prática. Problema se resolve a partir da equação.
O GOG
O Genival Oliveira Gonçalves é um instrumento. Toda caminhada tem início no conflito, na busca pela descoberta de quem, de fato, sou. Uma busca sem fim, mas percebi que para se construir é preciso se desconstruir, derrubar paredes internas. Sou resultado de um chamamento público, onde deixei de lado o edital, ;é de tal;, editais, ;é de tais;, para promover o ;é de todos;. Quando o quilombo tinha que reagir, ele se aglutinava. Então, aquilombe-se!
Racismo
Mais do que uma realidade, o racismo é uma pedra sedimentada. Temos hoje 676 mil presos no Brasil. 85% são negros e negras. Entre a direita e a esquerda, eu preciso seguir negro periférico. O genocídio da juventude negra ocorre em números alarmantes. Nunca se matou tanto preto. Tudo sedimentado pelo racismo. Por isso, visto uma camiseta 100% negro. É preciso denegrir, no sentido de tornar escuro, escurecer.
Discursos
Há quem veja o rap como agente de transformação social, há quem o veja como um gênero musical. Podemos todos conviver. De vez em quando escuto: ;Vamos falar sobre o negro na escola;; ;vamos parar de falar do negro no presídio;; ;vamos parar de falar da violência policial contra o negro;; ;vamos falar do negro no baile;. Vamos sim, mas temos que lembrar que somente 8% dos estudantes de universidades públicas são negros, temos que lembrar que o estado de São Paulo construiu 34 presídios, nos últimos 20 anos, e nenhuma universidade. É preciso contar que estão acabando com as escolas. Que o investimento federal em cultura beira o zero. A cultura continua sendo o livro mais alto da estante.
Entorno
Falta debate. Precisamos ir no Congresso Nacional discutir alguns temas, mas precisamos também falar sobre o Recanto das Emas, o Sol Nascente. Precisamos atestar que Águas Lindas não é Entorno. É região metropolitana de Brasília. É Grande Brasília. Quando você fala em Entorno, você está falando em algo coadjuvante, algo que sobra. O professor Boaventura Santos fala, por exemplo, do preconceito espacial. Essas concepções de que tal local é ruim, não presta, contamina. Por isso precisamos nutrir essa cultura do encontro, para avançarmos no debate. O Racionais MC;s tem uma frase que é muito importante: ;Nossos motivos para lutar ainda são os mesmos;.
Redução
Sou a favor das cotas e a favor da redução. Mas da redução da maturidade cultural brasileira. Molecada quer cinema, quer museu, quer teatro.
Crítica / Genival Oliveira Gonçalves ****
De peito aberto
A rima nunca esteve tão contundente. Ao longo do disco, GOG aborda o racismo, traz relatos crônicos sociais, toca em temas que outros não teriam coragem ; como o suicídio ; e disseca as políticas públicas. Eleva a periferia ao centro do debate e carrega o gueto nas letras e na voz, que segue marcante.
Acolhedor, o poeta abre espaço para novos nomes do cenário e convoca antigos parceiros para fortalecer o discurso. As vozes de Wellynton Abreu, do Paranoá, e do pernambucano Victor Victrola trazem uma expressividade singular e emocionam. Assim como o bandolim de Hamilton de Holanda, a presença de Dhi Ribeiro ; nossa dama do samba ; e o canto da diva negra Ellen Oléria.
As três décadas de trabalho não acomodaram GOG. Pelo contrário. Este décimo trabalho, talvez, seja a criação mais criativa e ousada da carreira. Desprovido de concepções restritivas, o rapper abarca referências múltiplas, seja para disseminá-las ou para desconstruí-las. De forma genial, subverte (e homenageia) os subversivos Caetano Veloso e Chico Buarque, evoca Nelson Maca e Solano Trindade, embola tramas nordestinas e celebra o mestre Cartola.
Um disco para escutar de cabo a rabo. Um manifesto lancinante da cultura negra. Impossível sair incólume. (Diego Ponce de Leon)
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