postado em 25/10/2015 07:45
São Paulo ; Em cena, Tarcísio Meira esbraveja: "Eu não aguento mais vestir roupas que não são minhas. Mas este é o meu trabalho. Eu sou um ator". Embora as palavras pertençam ao personagem que interpreta (magnificamente) em O camareiro, Tarcísio parece falar de si próprio.
Em cartaz em São Paulo, o ator retoma o espaço cênico depois de duas décadas afastado. Na peça de Ronald Harwood, Tarcísio encontra um texto que vai ao encontro do ofício que o carrega por quase 60 anos. "É mais fácil alcançar o sucesso do que mantê-lo", diz no decorrer da trama.
Aos 80 anos, poucos souberam manter o sucesso como ele. Nas seis décadas de carreira, colecionou papéis memoráveis, como em Irmãos coragem (1970) ou no clássico A idade da Terra, de Glauber Rocha. Tornou-se um dos maiores galãs da televisão e, ao lado da companheira, Glória Menezes, entrou para o rol de ícones da dramaturgia nacional.
Antes de encarar mais uma sessão do espetáculo, Tarcísio conversou com o Correio. Falou sobre o teatro, a vida pública e fez poesia ao comentar sobre a necessidade de momentos de solidão. Pouco depois, defrontou o público, que lotava a sala, e soltou aos quatro cantos: "Ninguém vai me dizer a hora de parar. Eu decido quando parar". Era o personagem. Mas poderia ser Tarcísio. O sorriso no canto da boca, ao proferir a frase, entrega.
>> Entrevista // Tarcísio Meira
Por que tantos anos longe dos palcos?
Eu tenho feito muitos seriados, filmes, novelas. E isso me afastou um pouco do teatro. Depois, teatro é algo que precisa ser feito com muito amor e satisfação. Fazer por fazer não interessa. É preciso encontrar um bom personagem, uma boa peça, o que nem sempre é fácil. Caso deste novo trabalho. Um espetáculo muito bonito, que apareceu na hora certa. Muito difícil, muito cansativo, mas um belo desafio.
Devem ter surgido outras possibilidades de retorno. O que há de especial neste trabalho?
Um espetáculo com uma teatralidade muito grande, uma certa mágica. Teatro sobre teatro. Falamos da relação com o público, das dificuldades de um ator em entrar em cena, das adversidades da jornada. Tudo levado aos palcos de uma forma muito especial e intensa. E há uma carga shakespeariana no enredo. E isso é muito bonito e não se encontra mais com facilidade.
A peça acaba por celebrar seus 80 anos de vida e 60 de carreira...
Foi uma coincidência. Eu teria feito ano passado ou ano que vem (risos). Na verdade, são quase 60 anos de carreira. Os 80 são feitos. A gente não pode passar por esses anos todos incólume. Temos que comemorar 80 anos, não? Embora eu não me sinta com 80 anos (ele enfatiza a idade). Não me preocupo muito com isso não, mas sei que são anos pra caramba. (risos)
E como o teatro aparece?
Nunca pensei em ser ator. Meu pai foi quem me levou ao teatro pela primeira vez. Fui assistir à Bibi Ferreira em A moreninha. Adorei aquilo. Mas minha vinda ao teatro foi acidental. Fui convidado para fazer uma peça amadora. Ganhei prêmio na época e, então, fui chamado para fazer teatro profissional. Achei divertido, fiquei.
Você começa em uma época em que o teatro era a principal fonte de renda. Eram seis, sete apresentações por semana. Hoje, o interesse do público parece menor...
Francamente, eu não sei. Como você lembrou, fiquei 20 anos longe do teatro. Fica difícil te precisar. Mas tenho a impressão de que o teatro mantém um público certo, fiel, que gosta dos palcos. Sei que as coisas mudaram, claro. Temos empresas, patrocínios, que facilitam a produção. O fato é que, hoje em dia, o ator que faz teatro também faz televisão, cinema, e isso inviabilizou um pouco a cena teatral. São poucos os que teriam disponibilidade para subir no palco todos os dias.
E como Tarcísio Meira se relaciona com as redes sociais?
Quer queira, quer não, eu sou uma pessoa pública. Não sei se me interessa mostrar minha intimidade, ou adentrar a intimidade alheia. Não sei se isso agradaria. Eu faço um uso tradicional da internet, para pesquisa e afins.
[SAIBAMAIS]Atores consagrados, da sua geração, andam esbarrando com personagens controversos, como Fernanda Montenegro e Nathalia Timberg... Aos 80 anos, com uma carreira consolidada, como encara esses desafios da profissão?
Acho que isso é muito pessoal. Papéis são papéis. A maneira que você encara seus trabalhos, como eles aparecem para o público... Isso é de cada um. Para eu fazer alguma coisa, eu preciso acreditar nela. Se eu não acredito no personagem, como farei com que o público acredite? Minha orientação parte dessa premissa: da crença no trabalho. Se não for assim, não vale a pena.
Você falou em ser uma pessoa pública. Muitos fazem uso dessa visibilidade para se posicionarem politicamente, socialmente...
Isso é um problema de cada qual. Se a pessoa acredita que deva fazer isso, que faça. Eu, pessoalmente, acho que não devo e nunca fiz. Talvez, eu errasse fazendo. Como muitos colegas erram ao fazê-lo. Insistentemente, erram. Mas é um erro deles. Lamentável porque, por vezes, eles têm um poder de convencimento muito grande. Mas se agem com a convicção de que estão acertando, quem sou eu para impedi-los? Mas nem sempre eles acertam.
Falando em acertar e errar, carrega algum arrependimento?
Ter fumado muito em cena. Um péssimo exemplo que dei. Quando criança, olhava aqueles atores nos filmes fumando. Inclusive, passei a ter grande admiração por um deles. Um homem bonito, grande ator.
Quem era?
Humphrey Bogart. Um craque. Mas fumava... E, talvez, eu tenha começado a fumar por ali. Hoje, tenho a consciência de que muita gente pode ter me visto fumando na televisão, achou bacana e passou a fumar também. Se for o caso, não terá sido um bom serviço que prestei.
Queria falar um pouco de Glória... Vocês são vistos como um exemplo de casal.
Não gostamos disso. Não queremos ser exemplo para ninguém. Simplesmente, aconteceu. Eu gosto da minha mulher, ela gosta de mim. Ponto final. Não há nada demais. Não há nada que nos diferencie das demais pessoas. Somos pessoas comuns, muito simples. Talvez, as pessoas sejam muito carinhosas conosco porque nos conhecem desde que nasceram. Uma vida inteira nos vendo. Acompanham nossas carreiras, nossos personagens. E somos muito gratos pelo carinho. Como dizem, ;ninguém busca o fracasso. Todos buscamos o sucesso;. E o sucesso é esse retorno. É o que legitima nosso trabalho.
Sente falta de um cotidiano mais calmo, de menos exposição?
Às vezes, e somente às vezes, a gente quer um pouco de solidão, um recolhimento. Nem sempre isso é possível. O único lugar que tive a chance de me sentar em uma sarjeta com a Glória e ficar observando as pessoas foi na Rússia. Foi uma sensação muito gostosa poder observar, sem ser observado. Talvez, por isso, eu goste tanto do campo, de ir para o mato. Permite um contato com meus "eus" mais primitivos. Acho importante nos afastarmos de uma experiência racional e possibilitarmos algo mais sensorial. Aguçar os ouvidos e escutar as folhas se batendo. Estar próximo de si próprio. Ali, longe de tudo, me reequilibro.
>> Crítica // O camareiro ****
Ode ao teatro
Diego Ponce de Leon
Nas últimas duas décadas, Tarcísio Meira não subiu ao palco. O retorno, rodeado por expectativa, deu-se por meio da peça O camareiro, em cartaz em São Paulo até dezembro. Nosso grande ator divide a cena com Chris Couto, Karen Coelho, Silvio Matos, Ravel Cabral, Karin Rodrigues e protagoniza o espetáculo ao lado de Kiko Mascarenhas.
O texto de Ronald Harwood parece ter sido escrito sob medida para Tarcísio. O enredo fala justamente sobre o ofício da atuação por meio do personagem Sir, um ator mais velho que enfrenta dificuldades em encarar mais uma sessão, depois de uma vida inteira dedicada às artes cênicas. Com o auxílio e cuidado do camareiro (Kiko Mascarenhas), Sir redobra os esforços para não decepcionar o público, que o aguarda como Rei Lear em cena.
O afeto com a plateia, o amor pela arte, a comoção do teatro permeiam o espetáculo e os diálogos entre o ator e seu fiel camareiro. ;Cada palavra que eu disser será um escudo contra essas forças contrárias. Pois chovam bombas, eu vou subir no palco;, exclama Sir, em determinado trecho. As palavras proferidas ganham ainda mais contundência diante da expressão de Tarcísio Meira, que surge impecável, sob a direção precisa de Ulysses Cruz.
Tarcísio comanda tom de voz, alterna semblantes e se movimenta com uma naturalidade impressionante, digna de quem tem seis décadas de carreira. Vê-lo revigorado no teatro emociona. Principalmente diante de um trabalho (shakespeariano) que homenageia o teatro em si. Cenários, luz, direção de arte, som e maquiagem estão à altura da celebração e merecem uma crítica à parte.
Generoso, o ator abre espaço para que os colegas de cena possam ter voz própria. E muitos aproveitam a oportunidade. Na cena final, Kiko Mascarenhas tem a responsabilidade de oferecer o desfecho ao público. E ele o faz de forma sublime. Eleva a carga dramática e nos lembra que grandes atuações não dependem somente de uma longa carreira, mas igualmente de vocação, compromisso e entrega. Tarcísio e Kiko levam o teatro a seu esplendor. Um privilégio poder testemunhar.