postado em 27/07/2015 14:18
// Crônica
Uma criança em idade escolar. Um adolescente. Não faz diferença. Um garoto ou uma garota. Não faz diferença. Estudante de escola pública. Ou particular. Pobre ou rico. Não faz diferença. Em um dia qualquer, vai à escola. Mas, naquele dia, as aulas foram canceladas. Todos elas ou algumas delas. Não faz diferença. Algo diferente foi programado.
Eis que, determinado horário, depara-se com o diretor de teatro Jonathan Andrade, travestido, falando sobre homofobia, intolerância, respeito ao próximo. Nunca viu uma figura como aquela. Esguia, feminina e imponente, mas em corpo de homem. Impressiona-se com a confiança daquela travesti ao falar de si, ao relatar a própria jornada. Não esperava, mas identifica-se com algumas palavras.
Na semana seguinte, um professor lhe leva para assistir a Meninos da guerra, um espetáculo travestido de denúncia. Reconhece alguns amigos no elenco. Fica feliz ao vê-los, já que são todos moleques de rua, usuários de drogas e ele sabe bem o fim reservado a esses adolescentes, alguns ainda com traços infantis, mas com marcas na pele da vida árdua. Dos açoites, dos abusos, das porradas. Foram tantos amigos já perdidos.
A escola volta a surpreender, um tempo depois, ao abrir espaço para uma peça intitulada Algo que não é falado, cujo enredo se debruça sobre relações homoafetivas. Há um debate após a apresentação. Pela primeira vez, sente-se à vontade em participar. Alguns colegas caçoam. Nem se importa.
Na Samambaia, por convite de uma amiga, esbarra com o Espaço Imaginário e, lá, conhece Miguel Mariano. A dedicação daquele senhor ao teatro emociona. As oficinas. Os bonecos. Tudo a partir de material largado nos lixos da cidade. Não muito longe dali, ouve falar de Kacus Martins, um ator itinerante, sempre a visitar as construções de Brasília, apresentando um divertido personagem que fala sobre alcoolismo. Prevenindo o alcoolismo. E pensa: ;Isso também não é falado;.
Não escondeu os olhos úmidos ao ver a prima, que passou a vida sobre uma cadeira de rodas, realizando o sonho de ser atriz. Maria foi escolhida para participar do projeto Pés?, na UnB, que visa a inclusão de deficientes por meio da arte e da dança. Ali, ela sorriu como nunca. Rafael Tursi, responsável pela iniciativa, a fez andar por onde nunca achou que pudesse.
Ainda não sabe, mas logo poderá conhecer uma dessas outras pessoas especiais, que carrega Estrela no sobrenome. Um exemplo de coragem. Um ser celestial disposto a abrir sua soropositividade para combater o preconceito.
Percebe, aos poucos, uma mudança no próprio comportamento. Não é mais o mesmo. Nunca imaginou que o teatro poderia tocar de tal forma. Transformar. Logo o teatro, que nunca foi pauta nas conversas de casa, que quase nunca deu as caras na escola. Aquelas pequenas intervenções provocaram grandes provocações.
Alegre-se diante de tal contestação. Mas, logo, entristece-se. Busca na memória, mas não recorda ter visto uma única autoridade naqueles eventos. Secretários? Governantes? Uma sensação desconfortável de privilégio lhe toma o corpo e questiona quantos tiveram a mesma oportunidade. Quantos foram expostos àquele imaginário cênico e reflexivo? ;Poucos;, deduz. E isso faz toda diferença.
Diego Ponce de Leon é crítico de teatro do Correio Braziliense.