Orson Welles completaria, nesta quarta-feira, 100 anos. Com passagem no teatro e no rádio, foi através do cinema que ele ganhou notoriedade. Em 1941, produziu um clássico do cinema mundial: Cidadão Kane, que conta a história de ascensão de um magnata da comunicação. Em seguida, vivenciou, aqui no Brasil, uma das mais profundas experiências da carreira, quando, em 1942, conduziu as gravações do filme It;s all true.
[SAIBAMAIS]O professor de cinema Firmino Holanda se dedicou intensamente à experiência brasileira do diretor norte-americano e contou no livro Orson Welles no Ceará (Edições Demócrito Rocha) os detalhes do filme que iria mostrar o Brasil para o mundo. Em entrevista concedida ao Viver por e-mail, o professor relata as motivações originais do filme, a relação de Welles com outros diretores norte-americanos, como Walt Disney, as constantes crises que envolveram o cineasta, os estúdios americanos e o governo brasileiro e, por fim, o tipo discurso que o diretor elaborou sobre o Brasil.
Qual a relação do filme "It;s all true" com o diálogo diplomático entre o Brasil e os EUA, naquele contexto de guerra?
Esse filme de Orson Welles foi desenvolvido para o Birô Interamericano, que fomentava a Política da Boa Vizinhança entre EUA e países latino-americanos, durante a Segunda Guerra. Tal órgão da política da Casa Branca tinha o seu departamento cultural, buscando um intercâmbio entre essas nações. Aí entrava o cinema, por sua notável força de comunicação. Mas Hollywood, já dominante no mercado, era célebre por seus filmes folclorizantes e reacionários sobre a realidade de seus vizinhos de continente. Com o Birô, haveria a tentativa de se superar equívocos como o daquele filme da brasileira Carmen Miranda, que se passava numa estranha Argentina, o que provocou a ira dos portenhos, ante as gritantes deturpações. Assim, convocar o diretor de uma obra importante como o recente Cidadão Kane (1941), para realizar um filme ambientado no México e no Brasil, seria garantia de resultado equilibrado. O próprio Welles se via como uma espécie de embaixador cultural nessa tarefa de vir fazer um filme em nosso continente. Depois, entretanto, quebrou a cara, pois a ideologia dominante iria minar seus idealismo nesse grandioso projeto.
Orson Welles sofreu algum tipo de censura no Brasil?
Orson Welles, em certa medida, mostrou a cara do brasileiro pobre negro, caboclo e mulato. O Estado Novo esperava do diretor não exatamente isso e queria um retrato edulcorado de um Brasil sem profundas contradições. Getúlio Vargas já cuidava da construção de uma imagem de nossa nacionalidade através de cinejornais, do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP). Para sua ditadura, filmar a miséria das favelas cariocas ou de uma aldeia de pescadores em Fortaleza, como fez Welles, não seria de bom tom. Tudo isso desfazia a visão cultivada pelo cinema oficial brasileiro. Eu não lembro de um episódio concreto e oficial que se configurasse como um ato de censura ao diretor. Mas existiam outras vias para essa intenção ao menos se manifestar.
A imprensa, fazendo o jogo do governo, costumava publicar matérias reclamando do gosto de Welles em mostrar cenas cariocas antiturísticas. Fala-se, por outro lado, de ações extremas e secretas, imputadas ao DIP, dando conta de que seus agentes jogaram algum material filmado na Baia da Guanabara. Testemunho apontando algo nesse sentido é o de Dick Wilson, assistente de Welles. Ele lembra que um funcionário de Departamento de Turismo sugeriu a alguém da produção do filme que perdesse negativos de It;s all true. Sei que no Ceará, mesmo tratando-se de uma obra sobre a miséria de nossos jangadeiros, não encontramos registros dando conta de alguma forma de cerceamento da liberdade de criação de Welles. Desconfio que o filme já deveria estar fadado ao arquivamento e, sabe-se lá, o Estado Novo já contava com isso. As desavenças dos produtores com Welles apontavam para o malogro total do projeto.
Qual a influência estética de Orson Welles sobre os cineastas brasileiros, em especial os documentaristas?
Não se costuma ver Welles como documentarista, apesar de ele contar com uma obra do calibre de "Verdades e Mentiras". O seu inacabado "It;s all true" flertava com o documental, especialmente no episódio dos jangadeiros cearenses. Aqui, apesar da encenação, ele contava com pessoas da comunidade pesqueira interpretando algo de suas próprias vidas. Seria como um "documentário de recriação" (como se dizia antigamente), pois calcado numa realidade cotidiana (como em "Nanook", de Flaherty). Como esse episódio feito em Fortaleza só seria montado postumamente, nos anos 1990, uma provável influência junto aos diretores brasileiros ficou perdida no descompasso da história.
Por outro lado, a presença de Welles no Brasil, enquanto dado cultural da maior relevância, encontrou em Rogério Sganzerla a pessoa mais receptiva. A partir de seu "Nem tudo é verdade", que recria a passagem do diretor norte-americano no Brasil, ele foi mergulhando sempre mais nessa mítica imagem. E fez mais três filmes em torno do tema. Mas Welles já estava de algum modo muito presente, bem antes, em seu "Bandido da Luz Vermelha", que trata de outro assunto. No Ceará, Welles ao menos inspirou um modesto documentário média-metragem, meu e de Petrus Cariry ("Cidadão Jacaré" , de 2005), que focaliza primordialmente a luta dos jangadeiros em nosso Estado.
Antes de vir ao Brasil, Orson Welles estava envolvido em polêmicas sobre o filme Cidadão Kane. Por que ele foi o encarregado de um projeto que, no final das contas, tinha um significado político?
Foi encarregado pelo seu talento. Entretanto, quando esse talento trilhou um caminho que ideologicamente contrariava seus produtores, esses facilmente o descartaram. Isso fazia parte do jogo do Hollywood e do Departamento de Estado, então irmanados no esforço de guerra. Antes de "It;s all true", os produtores adotaram o jovem Welles que surpreendera os EUA num programa de rádio onde narrava a invasão da Terra por marcianos. Depois, ele contou em "Kane"a história de um magnata das comunicações. O problema era que o modelo da vida real existia de fato e era um reacionário inescrupuloso, que logo usou seus jornais para difamar o diretor estreante. Acusava-o inclusive de comunista. Mas o filme era uma obra de arte e isso, ao que parece, não incomodou seus produtores.
Quero dizer que chamá-lo para o projeto "It;all true" foi algo justificado por esse valor artístico. Além de tudo, ele era da RKO, que estava cuidando da realização do filme para o Birô Interamericano, presidido Nelson Rockefeller, também dono da RKO. Então tudo se encaixava. E , afinal de contas, os episódios previstos para "It;s all true" não indicavam algo incendiário e nem controvero. Estando no Brasil, no entanto alguma coisa mudou nesse sentido. Mas, a bem da verdade, o filme não seria nada radical politicamente. O problema é que Welles lidava com uma ditadura, com o tradicional conservadorismo dos estúdios e com um esquema político do Birô. Tinha que se equilibrar entre essas forças e acabou sendo vencido por elas.
Em relação à outras produções hollywodianas, como Walt Disney, o que Welles produz de diferente sobre o Brasil?
Como não houve montagem do segmento carioca de "It;s all true", do qual existem fragmentos num documentário, fica difícil julgar esse trabalho, bem como compará-lo `aqueles filmes do Disney. Seria muito interessante, se fosse possível, pois em ambos haveria o denominador comum da música. Mas Disney era um conservador, para dizer o mínimo. Seus desenhos animados sobre o Brasil preferiam retratar um mundo mais apaziguado, folclórico, onde um dos expoente é Zé Carioca, o simpático papagaio malandro que inventara. Welles reflete, ao menos no segmento dos jangadeiros, um mundo belo, meio perdido no Atlântico Sul. Um lugar, porém, repleto de riscos para vida dos miseráveis jangadeiros, que viviam em suas palhoças, na luta cotidiana, esquecidos pelo poder público.
Que discurso sobre o Brasil as imagens registradas por Welles produzem?
A alegria do povo, mergulhado no samba, em pleno carnaval, certamente seria algo dominante no episódio carioca de "It;s all true". Também no Rio de Janeiro, Welles muito filmou a pobreza das favelas, em cores. Mas não sabemos se isto seria usado no filme e nem de que modo. Fica difícil julgar o que jamais foi editado. Já o segmento cearense desse longa nunca concluído, foi montado na década 1990, vários anos após a morte de Welles. Dessa parte podemos extrair algumas observações.). Ele queria mostrar uma aldeia, apartada da civilização,e conseguiu este efeito. Mas, na medida em que os jangadeiros viajam rumo ao Rio de Janeiro e aportam nas cidades, a ideia de civilização moderna vai se construindo aos poucos.
Assim, das palhoças do Mucuripe, chega-se a Recife, com casas pobres de pescadores, porém feitas de alvenaria. Mas também se ignora a ideia de uma cidade grande do outro dessa paisagem. Em Salvador, já se vê o casario compacto, grandes e ricas igrejas etc. No Rio de Janeiro, enfim, a apoteose da civilização. No fundo, ele quer mostrar um Brasil, Terra de Contrastes , para citarmos o livro de outro estrangeiro, o francês Roger Bastide. A aventura marítima dos jangadeiros é a exaltação da força humana, vinda dos mais pobres. Mas ela se dá num tom muito distinto das retórica dos cinejornais do DIP, quando documentaram a viagem de Jacaré, Tatá, Manuel Preto e Jerônimo.