Com o objetivo de traçar um painel de sua obra, que vai do clássico ao popular, há dois anos o cantor, compositor e pianista carioca começou a montar o quebra-cabeça para harmonizar as 12 composições do projeto, viabilizado pelo Selo Sesc, de São Paulo.
O samba-enredo que batiza o disco, segundo Francis, foi o último a entrar no repertório, que nada mais é do que reflexo da diversidade musical brasileira. ;É um privilégio para o compositor viver em um país de uma riqueza musical tão exuberante;, confessa já no encarte do CD, ao admitir que a presença de expressões musicais tão díspares, criativas e renovadas é um incentivo e estímulo para o músico criar sempre mais e mais.
[SAIBAMAIS]Da seresta (;Amorosa;) à fantasia para violino e orquestra (;Isabel;), passando pela canção, modinha, batuque e samba de todos os tipos, o compositor exercita a reconhecida facilidade em transitar entre o popular e o erudito, voltando a assinar música e letra (;Ilusão; e ;Mistério;), paralelamente às parcerias que não param de se renovar.
Que o diga ;Sessão da tarde;, que marca a estreia do pai coruja com a filha Joana Hime. Ou ;Breu graal;, em que Francis Hime volta a cruzar com o talento de Thiago Amud, com o qual estreou parceria em ;Doentia;, de 2012, feita a seis mãos , ao lado de Guinga.
A crescente dobradinha com a mulher, Olivia Hime (;Amorosa;, ;Canção noturna; e ;Canção apaixonada;), também está presente em ;Navega ilumina;. Assim como o trabalho com Geraldo Carneiro, com quem assina o samba-enredo que batiza o disco, parceiro mais constante depois de Chico Buarque, com quem fez clássicos como ;Atrás da porta;, ;Trocando em miúdos;, ;Meu caro amigo;, ;Pivete; e ;Vai passar;.
A surpresa do novo disco do artista carioca fica por conta de ;Maria da Luz;, o poema de Vinicius de Moraes que Francis encontrou no baú (e musicou), escrito na década de 1970 para o balé ;Polichinelo;, do cineasta francês Jean Gabriel Albicocco, que acabou não realizado.
No papel encardido pelo tempo, o Poetinha recomendava que o poema fosse musicado pelo antigo parceiro, com quem fez pérolas como ;Sem mais adeus;, ;Anoiteceu;, ;A dor a mais; e ;Tereza sabe sambar;. Foi a partir da década de 1980, quando começou a trabalhar com a música de concerto, que Francis Hime, de 75 anos (50 dos quais dedicados à composição), diz ter percebido que não há distinção entre o erudito e o popular.
;Vi que a barreira existente, na verdade, era muito artificial;, justifica Francis, salientando que a diversidade da MPB contribui para o compositor não se ater a barreiras.
;No início, senti certa resistência de ambos os lados;, acrescenta, admitindo a existência de preconceito tanto no que diz respeito à música popular quando à erudita. Na trilha desbravada por mestres como Heitor Villa-Lobos, Tom Jobim e Radamés Gnatalli, Francis Hime lembra que o que caracteriza a música de concerto é o desenvolvimento, pouco praticado na música popular.
Considerado pelo pesquisador Zuza Homem de Mello como um dos compositores harmônicos por excelência da canção brasileira, ao lado de Tom Jobim, Edu Lobo e Guinga, entre outros, Francis diz que, para ele, a harmonia é realmente a base de tudo.
;Sinto o desenvolvimento da melodia muito em função da harmonia;, explica o compositor, lembrando que o instrumento (o piano, no caso dele) nem sempre está presente no ato da criação.
;Hoje componho caminhando na Lagoa Rodrigo de Freitas, por exemplo. Outro dia, fiz um samba tomando sauna.; ;A melodia vem do aperfeiçoamento, do burilamento;, lembra, ressaltando que o piano colaborou para ele atingir tal estágio.
;Chego a ver imagens das notas musicais, que são de certa forma ligadas no piano;, confessa Francis Hime, que, não por acaso, começou a estudar piano aos 6 anos.
Três perguntas para... Zuza Homem de Mello
No que Francis Hime se distingue de companheiros musicais como Tom Jobim, Carlos Lyra, Edu Lobo, Dori Caymmi, Marcos Valle, Ivan Lins e Guinga, entre outros, que você classifica como compositores harmônicos?
A cabeça criativa de todos eles funciona praticamente da mesma maneira. Concebem uma música a partir de uma célula que nasce meio a esmo e é desenvolvida com o caminho harmônico por meio do talento e da técnica. Por isso, ao contrário, Francis não se diferencia deles. Todos são excelentes compositores harmônicos com uma obra respeitável. Essa é a obra que dignifica a música popular brasileira, a que é admirada no mundo.
Pianista, arranjador, compositor (erudito e popular), cantor, letrista... Enfim, em que área Francis mais se sobressai? Por quê?
Como no time de compositores harmônicos, a composição é seu forte. Possivelmente porque tem mais experiência como compositor de canções. É onde Francis se sobressai. Não faço distinção entre música popular e clássica, expressão que prefiro em lugar do pretensioso e inadequado erudito. A distinção deve ser entre tema instrumental e canção.
Qual parceiro, em sua opinião, melhor se insere no reconhecido universo melódico do pianista-compositor?
Chico Buarque, com quem tem maior número de parcerias. Seu brilhante novo disco revela que Olivia (Hime) soube criar, em ;Amorosa; e ;Canção apaixonada;, duas obras-primas, letras que atingem o ideal de uma canção, quando os versos e a melodia ficam amarrados como um conjunto indivisível.