A grosso modo, ele confessa até estar meio perdido no cenário atual de impulsos radicais e de causas que mobilizam massas. ;Quando você fala em manifestações, a qual se refere? Existem tantas. De direita, de esquerda, de partidos, de sindicatos, da marcha pra Jesus, da marcha da maconha, da marcha das vadias, da marcha da família, dos grupos anárquicos;, observa, em meio ao volume de protestos que assolam o Brasil.
Com a régua e o compasso da indignação, o explosivo cinema do diretor paranaense se concentra num roteiro bem costurado, com vasto leque de assuntos, em Jogo das decapitações. ;O filme é para quem quiser ver. Muitas pessoas se interessam porque, inclusive, esses assuntos são atuais e dizem respeito ao raciocínio selvagem da nossa vida política e social;, argumenta. Mesmo que o público não arrebente bilheterias, o diretor de Quanto vale, ou é por quilo?, entre outros, defende fitas com vitalidade, desalinhadas em relação ao país dos passos arrastados, que duelam com os de um elefante. No longa, em cartaz no Cine Brasília, o cineasta contabiliza lucros com os ;resquícios da ditadura; e revela certa contrariedade com o Estado, a exemplo do Sal;, de Pasolini, com quem evita se identificar. ;Me sinto marginalizado. Mas isso não vem ao caso, não tem a ver com o filme;, chia.
Compactado, o conteúdo de Jogo das decapitações até poderia ser maçante: ele revê a(s) impunidade(s) da ditadura ; com favorecimentos tanto dos carrascos quanto dos eternos heróis de conduta duvidosa ;, lima a infinita exaltação ao sofrimento e à tortura, faz chacota do vazio político atual e trata ainda da polícia (que ;nunca sai de moda;). Com tantos interesses (políticos e ideológicos) em jogo, o filme não estaria dando palanque a algum lobby? ;A que grupo você se refere? Ao que faz exaltação do sofrimento? Aos que fazem performances? No filme, não encerro a questão de dar palanque ou não, de ser contra ou a favor, mas de apontar as contradições e os paradoxos de problemas que estão aí pra todo mundo ver;, comenta o realizador.
Deboche
Há pérolas no caleidoscópio polifônico comandado nas telas que retratam até reacionários. O escárnio é reservado à nação que não sabe diferenciar ;exílio de intercâmbio;. O drama coloca em primeiro plano o slogan sugestivo ;Faturar com a pobreza faz com que ela se torne desejável;. Assim sendo, debocha, da forma mais saudável, do tal país rico que não teria pobreza. Sérgio Bianchi endossa que muita gente de extrema esquerda adora o filme. ;Acham que faz uma crítica necessária. E outra: o filme mostra as contradições do poder e o descompasso entre as gerações. Não acredito que esteja chutando qualquer cachorro morto;, analisa, respondendo à provocação. Tratando inclusive de ;socialismo de mercado; (como pontua um dos personagens) e desacreditando de assistencialismo (na trama, uma empregada frisa para a patroa, por exemplo, ter vindo de carro, e não de condução), o longa chega a questionar a arte (e o dirigismo) patente no patrocínio do Estado.
Penso, logo filmo
;Tudo nos meus filmes é direto. O assunto, a encenação. Não existe estética que ;embrulha; alguma coisa. Meu filme dá imagem ao que eu penso. Não acho que há essa separação estanque entre estética e ética. Você é crítico de cinema?;, alfineta o radical cineasta, ao receber um questionamento. Dúvidas, aliás, formam o estofo do discurso de Jogo das decapitações. Brasileiros seriam mansos? é uma das perguntas fundidas ao roteiro.
;O personagem disse isso, não eu. Há uma distinção entre o que eu digo e o que esse ou aquele personagem diz, ainda que muitas vezes eu concorde com eles. Sobre o fato de ser manso, muita gente é mansa se puder faturar algo com a mansidão e a omissão. A omissão dá tranquilidade e, às vezes, até dinheiro. A ditadura durou 20 anos. O brasileiro pode ser manso quando interessa ou quando é alienado, mas absolutamente violento também, como vemos no filme. Sua pergunta é tendenciosa porque Jogo das Decapitações não mostra a mansidão do brasileiro, mas a violência endêmica e sistêmica;, encerra.