A Nação Zumbi que, a cada show, tinha um músico diferente do Lamento Negro, grupo de Peixinhos, em Olinda, foi reduzida à primeira formação oficial: Jorge Du Peixe, Gilmar Bola 8 e Gira, nas alfaias; Canhoto, no caixa, e Toca Ogan, na percussão. Liderada por Chico, a banda hospedou-se em um apartamento em Copacabana, no Rio de Janeiro, e encarou ; por um mês ; uma rotina de 12 horas, de segunda a sábado, no estúdio Nas Nuvens.
O produtor dos sonhos da CSNZ era o guitarrista norte-americano Arto Lindsay, mas a Sony escalou o contrabaixista Liminha, dos Mutantes, dono do Nas Nuvens. ;Arto representava a cultura pop e conhecia bem o linguajar de Pernambuco, por ter morado em Garanhuns. Mas Liminha acrescentou o que Arto não poderia, pela experiência em estúdio. Soube tirar leite de pedra;, opina Dengue.
;Eles chegaram muito verdes, mas muito compenetrados e profissionais;, lembra Liminha. ;Era um som diferente, deu muito trabalho. Quando fui masterizar o álbum, em Los Angeles, sentiram falta da bateria, mas era um fator diferencial. O som era fechado;, conta o produtor. Apesar da inexperiência e de contratempos, como Lúcio ter contraído caxumba durante as gravações, o clima no estúdio era leve.
Seis meses depois, em 9 de abril de 1994, a banda apresentava o disco na segunda edição do Abril Pro Rock. ;A Sony Music veio em peso e distribuímos LPs e CDs para o público. Na segunda-feira após o festival, embarcamos para o Sudeste para participar de programas de tevê, de Faustão a Jô Soares;, acrescenta o produtor Paulo André Pires, empresário da banda à época. E, nessa viagem, ao apresentar as 14 faixas de ;Da lama ao caos;, Chico Science & Nação Zumbi sacramentou o Manguebeat e começou a desorganizar a música brasileira.
A revolução chegava às ruas
O popular virou pop quando Chico Science & Nação Zumbi exaltou, em ;Da lama ao caos;, o mangue soterrado e a cultura folclorizada de artistas do povo, como Mestre Salustiano, Velho Faceta e Lia de Itamaracá. ;O popular estava no ostracismo, totalmente renegado;, lembra o baterista Pupillo, que entrou na banda no final da turnê internacional do álbum. ;Houve uma recolocação no mercado. O maracatu, a ciranda, o coco, foram redescobertos;, explica o professor Jeder Janotti.
O feito, no entanto, não se materializou em espaço no mercado. Em dois anos, o disco não chegou a vender 30 mil cópias. As rádios foram o primeiro entrave. ;As emissoras de rock do eixo Rio-São Paulo eram unânimes: ;Isso é regional. Não tocamos;. Já nas populares, diziam ser rock. Fomos vítimas da ignorância;, conta Paulo André. Pesou contra o álbum, segundo as críticas da época, o fato de o som do estúdio ter perdido o impacto quase físico das alfaias ao vivo, no palco. ;A gente esperava um pouco mais de força em relação aos tambores, mas a qualidade dos arranjos ultrapassou as deficiências;, opina Renato L, coautor do Manifesto Mangue.
A virada veio com a turnê internacional, de fevereiro de 1995, garimpada pelo empresário e pela banda, graças ao envio de faxes e correio para produtores de todo o mundo. Foram 32 apresentações em 54 dias da From mud to chaos Tour 95. Com o show no Central Park, receberam o primeiro cachê em moeda estrangeira: US$ 1,5 mil. O New York Times encheu a performance de elogios, e a ela se seguiram apresentações em festivais como o Montreaux Jazz e Sphinx, em Bruxelas. O disco foi lançado no Japão, nos Estados Unidos e nos principais países da Europa. As faixas de ;Da lama ao caos; também ganharam versões do Rappa a Sepultura. E a revolução mangue chegava às ruas.
Depoimentos
;Da lama ao caos fala de um estado dos grandes centros urbanos. É como se um homem-caranguejo saísse em busca de um novo modo de vida;
Chico Science, músico, em vídeo à época do lançamento do primeiro álbum
;O disco, para mim, foi uma decepção. A gente esperava algo parecido com o que rolava nos shows. Mas Liminha procurou um caminho diferente. Mudou o som. Só que a história transformou o disco em um grande álbum.;
Miranda, produtor do primeiro disco da Mundo Livre S/A
;O álbum derrubou das prateleiras da indústria fonográfica a mesmice. Influenciou ao me fazer ter orgulho de ser um artista contemporâneo com ideias que não se entregam ao caminho mais fácil.;
Pedro Luís, músico
;Hoje não tenho mais a visão reticente que tinha do álbum na época do lançamento. Valorizo, principalmente, duas atitudes que se refletem naquela obra: a da utilização dos ritmos populares, como o maracatu e o coco, e o teor político e contestatório contido nas letras. Ambas contribuíram para os jovens se aproximarem mais da cultura e dos problemas brasileiros.;
Antônio Nóbrega, multiartista
;Rolava uma expectativa muito grande. E, quando saiu, estranhamos a falta de peso dos tambores. Liminha não tinha muita paciência de absolver toda aquela força. Faltava know-how também. Mas o acabamento final foi bacana.;
Fred Zeroquatro, vocalista da Mundo Livre S/A
;Vi dezenas de concertos deles, e vi que o que estavam fazendo era o novo. Tenho certeza que outros pensam a mesma coisa. Gilberto Gil pensa a mesma coisa. Não havia timidez com valores brasileiros, era antropofágico;
Herbet Viana, da banda Paralamas do Sucesso
Assista ao vídeo de A Cidade:
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