;Ser amigo da arte é gostar da arte e não ser simplesmente um boneco da indústria do entretenimento. A pessoa precisa saber que um jingle tem uma loja por trás, é pensado, é matemático, feito a partir de um briefing. Arte, para mim, existe na canção que sai do coração para a boca. Me interessa o que é arte verdadeira;, afirma Alceu Valença. Menino nascido no ;sertão profundo;, traz na lembrança o encanto que sentiu ao ver variados tipos de blocos passarem diante da porta da casa dele, na Rua Palmares, ao se mudar para o Recife com 10 anos. Cultivou na juventude o hábito de passar o carnaval em Pernambuco, não só vendo os grupos da capital, mas também visitando cidades próximas, onde pôde ver e ouvir caboclinhos e maracatus e outros grupos.
O entusiasmo com o ;carnaval atemporal; de Olinda, onde se pode ouvir ainda hoje a música dos anos 1920 e frevos do século 19, vem junto com constatação dolorida: ;Tudo isso está ameaçado. Só se ouve o batidão, o bate-estaca. Embolada virou rap, samba-canção se tornou balada. Onde está o frevo? E o maracatu? Universal é só o que vem da América do Norte?;, indaga. ;Temos carnaval sofisticado, que ninguém conhece. Vivemos sob ditadura da mídia que toca um gênero só, o do Rio de Janeiro;, afirma indignado. ;Não estou entrando na questão da qualidade ou dizendo que a música de Pernambuco é melhor, mas cada lugar tem o direito a seu carnaval. Precisamos voltar para nossas raízes ;, afirma o cantor e compositor, criticando o que chama de ;glamourização do lixo cultural;.
Catarse
;Não nego as minhas raízes, crio a partir delas algo original. É por fazer isso que sou Alceu Valença, não Bob Marley, nem Paul McCartney ou Mick Jagger;, afirma o pernambucano. O artista têm 68 anos e nasceu em São Bento do Una, interior de Pernambuco, mas frisa que ama outras três cidades: Olinda, Rio de Janeiro e Paris. Formado em direito, em 1969, desistiu das carreiras de advogado e jornalista para se dedicar à música. ;Vivi cercado de artistas verdadeiros, por isso decidi fazer arte. Meu pai não queria que eu me dedicasse à música, mas não obedecia. Não obedeço a ninguém até hoje. Faço o que quero;, garante.
Entre as lembranças de infância, ligadas ao carnaval, destaca ter visto o pai conversando com o maestro e compositor Nelson Ferreira (1902-1976), especialista em frevos e diretor artístico do selo Mocambo (o único no Brasil dos anos 1950 fora do eixo Rio-São Paulo). ;Era um mito que estava na minha casa. Um homem que era reflexo para o povo e vice-versa.; Com emoção lembra-se de show, no Marco Zero, no Recife, carnaval fora de época registrado em DVD: ;Foi uma catarse. Eram 160 mil pessoas mostrando que não tinham vergonha da cultura delas;. Está previsto para ser lançado antes do carnaval o clipe ;O homem da meia-noite; e a versão física do disco ;Amigo da arte;.
CONVITE
A capa do disco Amigo da arte reproduz convite de casamento de Alceu Valença com Yanê Montenegro, desenhado pela pintora Marisa Lacerda. A imagem sinaliza diálogo do novo trabalho com o disco ;Maracatus, batuques e ladeiras; (1994), que também tem capa com desenho da artista.
Três perguntas para...
Alceu Valença, músico
O carnaval é parte da sua formação musical?
Ele é uma das referências da minha música. Tudo meu é pessoal, porque é vivenciado. Tenho o Nordeste profundo, o sertão profundo, caminho de Pernambuco a Minas pela margem esquerda do São Francisco, onde se estabeleceu a civilização do couro. Sei cantigas medievais, aboios dos vaqueiros. Quando fui para o Recife, morei na Rua dos Palmares, onde, durante o carnaval, passavam todas as manifestações. O que ouvi foi o frevo de orquestra, as pessoas cantando em coro, carnaval em que não se fazia muita bagunça. A diversidade do carnaval pernambucano se fundiu à minha personalidade, que também é assim.
Qual é a alma do carnaval?
A alegria que passa em quatro dias, uma alegria passageira. Como o ser humano é alegre e nostálgico, isso se reflete nas músicas. É como diz a música de Luiz Bandeira: ;Ó quarta-feira ingrata/ chega tão depressa/só pra contrariar/ quem é de fato/ um bom pernambucano/ que espera um ano/ e se mete na brincadeira/ esquece tudo quando cai no frevo/ e no melhor da festa chega a quarta-feira;. O carnaval traz momentos lúdicos, mágicos. Você pode fantasiar, pode ficar bêbado, fazer merda. É ótimo.
Onde você passa os dias de folia?
Em Pernambuco: Olinda e cidades próximas. Tudo que está no disco ;Amigo da arte; tem nas ruas de Recife: frevo de canção, de bloco, de orquestra; afoxé; ciranda; maracatu rural e baque virado. À noite, o Marco Zero é um grande quartel-general do frevo, especialmente bom, porque não tem arma, tudo é só brincadeira. É o meu carnaval. Sou dos que acham que não tem essa história de um carnaval ser melhor do que o outro. O do Rio é o do Rio e o de Olinda o de Olinda. Ouro Preto tem um carnaval maravilhoso, que tem de ser cultuado. Cada um tem o seu jeito e o direito de ser o que é.
Palavra de especialista
Rodrigo Toffolo - Regente da Orquestra Ouro Preto
Existe na música de Alceu Valença um sentimento de brasilidade forte. E quando dizemos Brasil é preciso lembrar que se trata de país grande, com diversas formas de falar, comer, viver, vestir. Alceu é daqueles artistas que passam sentido de nação, que fazem a pessoa se sentir brasileiro ao ter contato com sua arte. São composições benfeitas, bem pensadas e desafiadoras, mas que soam simples, que falam diretamente a nós. E conseguir soar simples é o segredo da boa música e das grandes figuras. (Em maio será lançado o DVD Valencianas, com Alceu Valença e Orquestra Ouro Preto.)