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Diversão e Arte

Fotógrafo lembra como driblou a ditadura para registar funeral de Neruda

O Correio resgata imagens do poeta chileno, poucos instantes depois da morte, tiradas por Evandro Teixeira, em uma aventura memorável do fotojornalismo brasileiro



As imagens do fotógrafo baiano Evandro Teixeira podem fazer parte do inquérito que investiga a verdadeira causa da morte de um dos maiores poetas latino-americanos modernos, Pablo Neruda, ocorrida em 23 de setembro, há 40 anos. Neruda ganhou o Prêmio Nobel de Literatura em 1971. Com o instinto de repórter, Evandro conseguiu driblar um batalhão de policiais durante uma das ditaduras mais sangrentas da América Latina, comandada pelo general Augusto Pinochet, na década de 1970.

Em setembro de 1973, centenas de correspondentes estrangeiros trabalhavam no Chile com a missão de levantar informações sob o clima de terror, de tensão e de arbitrariedades típicas dos regimes de exceção. Circulou a versão de que Neruda estava confinado em Isla Negra, onde tinha uma casa. No entanto, uma fonte importante passou a Evandro a notícia de que o Nobel de Literatura de 1971 se encontrava a caminho de Santiago.

O amigo de Evandro recomendou: ;Ele está no hospital. Vá e fale em meu nome;. De fato, ao chegar, os médicos confirmaram a informação, mas não deixaram o fotógrafo se encontrar com Neruda. Prometeram comunicar ao jornalista qualquer novidade: ;Voltei lá e eles me disseram: ;Lamentavelmente, o nosso poeta morreu;;.

No dia seguinte, Evandro saiu voado, com uma pequena câmara escondida, rumo ao hotel indicado pelo amigo e se deparou com um forte aparato policial. Chegou mais perto e, todo dissimulado, ficou ;flanando de bobeira; esperando uma improvável brecha para entrar no hotel onde estava Neruda. Ele já havia fotografado muitos dribles espetaculares de Garrincha no Maracanã e, agora, seria a sua vez de aplicar uma finta salvadora da pauta. À frente havia um pelotão de soldados, armados de metralhadoras. A oportunidade apareceu: ;Lá, pelas tantas, abriu uma porta lateral, aproveitei o descuido e entrei. Ao chegar lá dentro, dou de cara com a dona Matilde (a esposa do poeta) e o corpo de Neruda em uma maca. Era uma cena terrível.;



Mas Evandro teve a presença de espírito de se identificar na condição de amigo de Jorge Amado. Foi a senha para que os caminhos se abrissem naquele momento extremamente delicado: ;Jorge Amado é nosso irmão;, comentou Matilde, comovida. Com a permissão da viúva, Evandro não parava de tirar fotos do poeta morto.

Em seguida, Neruda foi levado para um velório reservado, com a presença de poucos familiares e amigos. O local era uma outra casa dele, que ficava em um bosque muito alto, com uma escada de terra. Foi uma travessia difícil. Havia um riacho raso. Era possível atravessá-lo a pé. No entanto, os militares chilenos quebraram uma represa e ele se transformou em um rio: ;Foi preciso improvisar uma ponte. A casa estava literalmente destruída;, conta Evandro.

No dia seguinte, os familiares e amigos arrumaram o corpo, colocaram a bandeira do Chile no caixão e todos partiram para o cemitério. A certa altura, a notícia já havia se espalhado: ;As pessoas começaram a chegar;, lembra Evandro. ;O Exército queria dispersar a multidão. Mas, ao ver a quantidade de gente, Pinochet deu ordem para não atacar. Quando o corpo de Neruda entrou no cemitério, as pessoas começaram a recitar os seus poemas, foi uma coisa emocionante, eu chorava muito.;

As imagens foram reunidas no livro Tributo a Neruda, editado em 2005, a pedido do então governador César Maia. Recentemente, o inquérito sobre a morte de Neruda foi retomado e um comissário pediu o depoimento de Evandro, pois, passados 40 anos, ainda pairam dúvidas em relação ao episódio. Oficialmente, Neruda morreu em decorrência de um câncer na próstata. No entanto, o motorista do poeta afirmou que, apesar de ser diagnosticada a doença, ele teria sido envenenado. ;O governo de Pinochet alegou que Neruda estava doente e debilitado;, comenta Evandro. ;Eu disse ao juiz: tudo que eu poderia falar está nas fotos. Elas mostram um homem gordo, na plenitude. As fotos falam por si. Não tenho dúvidas de que ele foi assassinado.;