Jornal Correio Braziliense

Diversão e Arte

Artistas e colegas de militância cultural relembram a personalidade de Jota

Não faz muito tempo, Jota Pingo sentou-se em um bar na Asa Norte. Olhou para a bebida, à mesa, e proferiu: ;Vamos brindar. Essa é a minha última garrafa de vinho;. Bebeu do cálice. Passou a discorrer sobre as enfermidades do corpo e da mente. A agitada jornada de uma vida em luta pela cultura e pela liberdade artística estavam o sepultando. Ele sabia disso. Quem relata o episódio é o maestro Rênio Quintas, sentado naquela mesa: ;Tive essa chance de me despedir de um ser humano tão querido. Doeu-me muito essa perda;, disse.

A noite foi animada e contou até com atração musical: o amigo regueiro Renato Matos. A amizade entre Jota Pingo e o autor de Um telefone é muito pouco era antiga. ;Morei com ele muitas vezes. Penso nele e me lembro da generosidade;, conta Matos. O cantor recordou do entusiasmo constante de Pingo em tudo que fazia: ;Ele carregava uma criança dentro de si;. O mais importante, de acordo com Matos, ;é a continuidade do trabalho que ele deixou;. ;Temos que preencher essa lacuna. Ele plantou muito. Cabe a nós levarmos adiante;, desabafou. Opinião compartilhada por Ivan da Presença, livreiro e personagem constante do circuito cultural: ;A cidade fica vazia. A morte dele decreta um buraco na alma de Brasília;, disse. Sua morte movimentou as redes sociais ontem. Amigos e fãs compartilharam o sentimento de surpresa.

O legado do diretor Jota Pingo é vasto. Figura emblemática da cena brasiliense, Pingo esteve à frente de produções que ajudam a definir a identidade cultural da capital. Uma tragédia atual, de 1982, exibida no Teatro Galpão, é uma das mais conhecidas colaborações. Porém, foi com a ópera rock Último rango, do ano anterior, que Pingo marcou Brasília. Desde então, a cidade o celebra como se daqui fosse (ele nasceu em Porto Alegre) e orgulha-se das manifestações culturais lideradas pelo filho adotivo. No palco, o poeta Nicolas Behr experimentava uma função pouco recorrente: vocalista (durante uma única canção) do Aborto Elétrico. ;Eu cantava um mantra folclórico;, lembra o poeta.

Sopão

A peça Último rango era, na verdade, um grande happening. Por ali, reuniam-se os artistas da cidade e o público alternativo da época. ;Eu aproveitava para vender meus livros e, claro, tomar a sopa que era servida ao final, todos os dias;, conta Nicolas. O sopão, oferecido para os presentes e para os moradores de rua das proximidades, acabou virando um marco do evento. ;Ali já víamos a autenticidade dele. Sempre viveu como quis e foi feliz assim;, afirmou o escritor. A morte do amigo motivou Nicolas a prestar um curioso esclarecimento: ;A frase ;mais vale um pingo de esperança do que um mar de lama;, que costuma ser atribuída a mim, é, na verdade, dele;.

A tal canção folclórica entoada por Nicolas só era possível porque o vocalista oficial do Aborto Elétrico concedia o espaço e endossava a brincadeira. Renato Russo ainda era Manfredini naquela época e aproveitou o Último rango como laboratório para o que estava por vir. ;Renato transitava por todas as artes. Imagino as diversas conversas que ele e Jota Pingo tiveram;, conta a irmã Carmem Manfredini, que assistiu várias vezes à peça: ;Nunca tinha visto uma manifestação tão abrangente. Foi uma efervescência inédita;. Carmem acredita que, como ela, Renato sempre guardou aquele momento entre as melhores lembranças. ;Um visionário;, resumiu.

Ator de dotes e vacas
Antes de enveredar pelas direções e roteiros pelos quais seria reconhecido, Pingo foi ator. No início da carreira, na década de 1970, decorava os papéis, em vez de dirigi-los. A estreia na montagem do musical Hair foi inesquecível, para quem fez e para quem viu. Quem conta é o próprio, em entrevista concedido ao Correio em 2011: ;Fui o primeiro homem a aparecer nu no teatro brasileiro. A peça era Hair e eu, o primeiro a aparecer por causa de um detalhe anatômico;. Há quem corrobore a história.

O diretor Vladimir Carvalho estava na plateia. ;Foi a primeira vez que o vi. Estava ali para conferir Sônia Braga, sem nada. Mas, quando aquela lona era erguida e revelava todo o elenco pelado, era impossível não notá-lo;, lembra, aos risos. Mal sabia que, anos depois, contaria com o dotado colega para as próprias criações. ;Além do depoimento dele para Rock Brasília ; Era de ouro, contei com sua poderosa voz para um filme que fiz sobre o Hino Nacional;, revelou.

Além das intervenções, Vladimir acredita que a cultura de Brasília perde uma rara representação: ;Ele foi um dos últimos contrapontos. Um rebelde, fantástico e curioso;. O diretor recordou a luta de Pingo contra a censura, ;contra a repressão;. Ele espera que a nova moradia possa recebê-lo integralmente: ;Que os céus guardem espaço para sua irreverência;.

O maestro Jorge Antunes também lamentou a perda: ;A criatividade, a audácia e a irreverência morrem aos poucos em Brasília. No Pingo estavam sonhos e utopias aos quais temos obrigação de dar guarida;. A irreverência é, certamente, um dos atributos mais mencionados quando o nome do indômito agitador vem à tona. O jornalista Paulo Pestana, que trabalhou com Pingo por um breve período, mas que sempre o encontrava ;em virtude das mesmas pautas;, lembrou da divertida época que o diretor foi parar na direção do Clube da Imprensa: ;Um determinado dia, ele aparece com uma vaca por lá. Para criar mesmo. Ninguém entendeu nada;. Ele nunca explicou. E nem precisava.