Jornal Correio Braziliense

Diversão e Arte

Literatura com tema de gastronomia não para de apresentar novidades

A afirmação de que ;a leitura alimenta a alma; parece trocadilho irônico diante de livros como A viagem de cem passos, de Richard C. Morais, e O enigma do morango, de Joanna Fluke. Os dois romances são lançamentos recentes de um filão literário que, embora não seja novo ; A festa de Babette, da dinamarquesa Isak Dinesen, e Comer, rezar, amar, da norte-americana Elizabeth Gilbert, renderam filmes de sucesso ;,vem se firmando na mesma proporção em que cresce o interesse do público pelo tema gastronomia. Interesse fomentado pela proliferação de escolas especializadas e pela expansão e diversificação do mercado de restaurantes e empórios.

Entram nesse nicho tanto romances de puro entretenimento ; como os da própria Joanne Fluke ou Amei, perdi, fiz espaguete, de Giulia Melucci ; quanto representantes de uma literatura de estrututura mais sólida ; que seria o caso de Na cozinha, da britânica Monica Ali; do Livro de receitas para mulheres tristes, do colombiano Héctor Abad; ou o citado A viagem de cem passos. Em comum entre eles, há a presença da comida como elemento que conduz ou ilustra a narrativa. Da história criada por Morais ; norte-americano nascido em Portugal e criado na Suíça ; parece emanar o aroma de especiarias, tal a riqueza de detalhes com que ele descreve a infância do protagonista em Mumbai, na Índia, em meio ao cotidiano turbulento do restaurante do avô. Cheiros e sabores pontuam as lembranças do personagem enquanto ele se move por Londres, Lumiére (no interior da França) e, finalmente, Paris, onde se torna um conceituado chef de cozinha. ;Quem quer ser um milionário encontra Ratatouille;, resumiu Ligaya Mishan, em crítica no New York Times.

Leia abaixo trechos do livro A viagem de cem passos, Livro de receitas para mulheres tristes e de Madame Bovary:

A viagem de cem passos
De Richard C. Morais

"Sinceramente, trabalhei quase o dia inteiro num ritmo alucinante. Depois de trinchar as lebres, deixei-as marinar em vinho branco, alho socado, vinagre de malte, mostarda doce alemã e alguns frutos secos e amassados de zimbro para dar aquele vestígio pungente e com toque de pinheiro. Em seguida, a lebre amaciada cozinhou horas em fogo lento na panela de ferro. Nada demais. Apenas a minha versão de uma velha receita campestre, vista por alto durante uma sessão de estudos na biblioteca de madame Mallory e que parecia perfeita para uma fria noite de outono.
Para acompanhar, preparei um cuscuz com água de hortelã (em vez do tradicional macarrão na manteiga), salada de pepino com molho azedo e uma mancheia de lingonberries. Achei que fariam um contraponto suave para o sabor pesado da mostarda na lebre assada. Em retrocesso, vejo que o pepino e o creme foram, conscientemente ou não, inspirados na raita, o pepino com iogurte de minha terra natal."



Livro de receitas para mulheres tristes
De Héctor Abad

"Viva sua tristeza, apalpe-a, desfolhe-a em seus olhos, molhe-a com lágrimas, envolva-a em gritos ou em silêncio, copie-a em cadernos, grave-a em seu corpo, nos poros de sua pele. Pois só se você não se defender é que ela fugirá, aos poucos, para além do centro de sua dor íntima.
E para degustar sua tristeza vou recomendar também um prato melancólico: couve-flor em névoa. Trata-se de cozinhar essa flor branca, triste e consistente, no vapor. Devagar, com o cheiro do hálito que a boca exala nas lamentações, ela vai cozinhando até ficar macia. E envolta em névoa, em seu vapor fumegante, acrescente azeite e alho e um pouco de pimenta, e salgue com suas próprias lágrimas. Então saboreie essa flor lentamente, abocanhando-a no garfo, e chore mais, e mais ainda, que no fim ela sugará sua melancolia sem deixar você seca, sem deixá-la tranquila, sem roubar a única coisa que é sua nesse momento, a única coisa que ninguém nunca poderá tirar de você, a sua tristeza; mas com a sensação de ter compartilhado com essa flor imarcescível, com essa flor absurda, pré-histórica, com essa flor que os namorados nunca pedem nas floriculturas, com essa flor de couve que ninguém põe nos vasos, com essa anomalia, com essa tristeza florida, sua própria tristeza de couve-flor, de planta triste e melancólica."



Madame Bovary
De Gustave Flaubert

"Foi debaixo do telheiro onde se guardavam as carroças que puseram a mesa. Nela havia quatro lombos de vaca, seis frangos de fricassé, vitela estufada, três pernas de carneiro e, ao centro, um bonito leitão assado, rodeado por quatro grandes chouriços com azedas. Aos cantos erguiam-se as garrafas de aguardente. A sidra doce engarrafada fazia sair a sua espuma espessa em torno das rolhas e todos os copos tinham sido previamente cheios de vinho até às bordas. Grandes taças de leite-creme, que estremeciam ao mínimo toque na mesa, apresentavam, na sua superfície lisa, o monograma dos noivos, desenhado em arabescos de missanga de açúcar. Tinha-se mandado vir um pasteleiro de Yvetot para fazer as tortas e os nogados. Por ser a sua estreia na região, apurara-se no trabalho; e ele próprio trouxe para a mesa um bolo armado que provocou estrondosos aplausos. A base, em primeiro lugar, era composta por um quadrado de cartão azul, representando um templo com pórticos, colunas e estatuetas em gesso em toda a volta, dentro de nichos constelados de estrelas de papel dourado; a seguir vinha no segundo andar, uma torre de pão-de-ló, rodeada de pequenas fortificações de angélica, amêndoas, passas de uva, gomos de laranja; e, por fim, sobre a plataforma superior, que representava um prado verde onde se viam rochas com lagos de geleia e barcos feitos com cascas de avelãs, havia um pequeno Cupido sentado num baloiço de chocolate, cujos postes terminavam, no cimo, à maneira de esferas, em dois botões de rosa naturais.
Comeu-se até à noite. Quando se cansavam demasiado de estar sentados, iam passear pelos pátios ou jogar uma partida de malha no celeiro; depois voltavam à mesa. Para o fim, alguns adormeceram ali mesmo e ressonavam. Mas, quando chegou o café, todos se reanimaram; (;)"