A segunda contestação também faz parte da cultura ou consciência coletiva da cidade. ;Nós estamos em uma cidade concebida com um projeto funcionalista como proposta arquitetônica e urbanística. E a rua funciona como lugar de trânsito, passagem. As potencialidades da rua vão se perdendo como espaço cultural, de encontros casuais. Além disso, existe cada vez mais existe a ideia da rua como o profano, o lugar do medo;, completa Schvarsberg. A curadoria feita pela cineasta e pesquisadora Daniela Marinho procurou convergências entre os títulos escolhidos para cada noite. No extra campo do quadrado cinematográfico, a seleção de filmes tenta encontrar diálogos ou características semelhantes com as regiões administrativas em que serão projetados. Portanto, os 11 programas do festival serão diferentes. A primeira sessão desta quinta, às 19h, no Plano Piloto inicia com Brasília em construção pelas lentes do documentarista Vladimir Carvalho em Brasília segundo Feldman e Fala Brasília, de Nelson Pereira dos Santos até a cidade dos anos 2000, em De asfalto e terra vermelha, de Camila Freitas e Antoine d;Artemare.
Cinco perguntas// Camila Freitas
1- Morar no exterior te ajudou a ter uma visão diferente em relação a cidade? O que mudou?
Camila Freitas ; Estar fora da cidade e sobretudo do país nos últimos cinco anos foi parte essencial do meu processo de compreensão. O recuo e a distância, juntamente com retornos frequentes a cada ano, me permitiram apreender Brasília de uma maneira mais ampla e menos centrada unicamente na minha própria experiência cotidiana. Eu sempre tive muito amor pelas coisas e assuntos de Brasília. Ao mesmo tempo, quando morava aí, muitas coisas me incomodavam diretamente e eu passei um tempo nutrindo um certo desprezo pela cidade. Quando saí do país, comecei a entender porquê a realidade social de Brasília me incomodava e essa sensação veio com certo alívio porque vi com meus próprios olhos que outras maneiras de viver são possíveis, e mesmo vivendo aí eu não precisaria mais seguir os códigos que me desapontavam. De asfalto e terra vermelha teria sido um filme muito diferente sem esse recuo e ele só foi possível graças a divergência das experiências dos realizadores quanto a cidade: a minha visão de brasiliense que sempre pensou sobre a cidade e a do Antoine (francês), a quem ela tinha sido apenas recentemente apresentada e para quem parecia fria e estranha e ao mesmo tempo tão atraente quanto um ímã.
2- O documentário faz várias análises sobre a cidade de Brasília atual, incluindo a especulação imobiliária, usando como premissa os trajetos feitos de carro. O que mudou na cidade desde a inauguração na visão de quem cresceu na cidade?
Camila ; Brasília é uma espécie de transplante feito no coração do Brasil: células estranhas ao ambiente ; e estranhas entre si ; foram artificialmente implantadas. Levou tempo para que elas fossem incorporadas pelo tecido receptor. As pessoas se mudaram para Brasília com objetivos bastante precisos no começo e a função administrativa principal é inconteste. Ao longo das gerações, com o aparecimento dos nativos brasilienses, o estabelecimento de regras sociais e de uma lógica própria à cidade foram se solidificando. As pessoas foram entendendo que esse patchwork é em si mesmo uma identidade. Brasília sempre foi alvo de especulação imobiliária. Ela foi construída sob essa égide. No entanto, essa questão veio muito mais descaradamente à tona nos últimos anos, como várias outras, e para a qual Brasília não tinha dado uma resposta tão pungente quanto a que ela está disposta a dar hoje. Um exemplo é questão do setor Noroeste. Parece que os brasilienses cansaram de habitar uma cidade que lhes escapa, que serve a uma elite pequena que muitas vezes não tem qualquer envolvimento com a cidade. Essa ideia não é mais aceita. Brasília existe. É una e diversa.
3- Apesar de suscitar muitas questões, o documentário não encerra respostas. Existe uma perspectiva para os temas que vocês levantam?
Camila ; A idéia do filme não era ser militante com respostas no verso e nem conter indicações de para onde ir ou o que fazer. Nem se pretende dar uma visão apocalíptica da cidade. O filme é sobre o sentimento de brasilienses, autóctones ou não, sobre a cidade e as suas evoluções. Ao mesmo tempo é um retrato formal e abstrato da cidade filtrado pelos nossos sentimentos enquanto realizadores.
4- De alguma forma, o Rua Cinema Nosso está devolvendo o seu filme para as ruas. Comente esta relação?
Camila ; Esse tipo de iniciativa se vê pouco em Brasília porquê alguém colocou na nossa cabeça que a rua não é lugar de gente e que cinema é dentro de shopping. Numa cidade onde quase tudo se passa indoors ou em espaços bem delimitados, onde o último cinema de rua resiste por um fio e em que o acesso a um cinema não necessariamente mainstream é tao específico (em todos os sentidos do termo, vide a localização do CCBB por exemplo), uma iniciativa como a do Rua mostra que Brasília pode e deve se reapropriar não somente das ruas como também do espaço de representação no cinema.
5- É o primeiro filme que você e Antoine d;Artemare assinam juntos?
Camila ; De asfalto é o nosso primeiro filme juntos como realizadores, dividimos a fotografia de dois curtas-metragens da Indira Dominici, outra brasiliense vivendo em Paris, que se chamam A lavanderia e Pétanque, ainda por serem lançados. Tanto eu quanto Antoine fizemos escolas de direção de fotografia e nos direcionamos para essa seara, o que nos aproxima. Em De asfalto, colocamos juntas a nossa pouca experiência em direção e levamos a cabo um projeto que passionava ambos, cada um à sua maneira. Antoine fez a direção de fotografia do filme, que aliás era um trabalho de fim de estudos para a La Fémis.