Daniela Gonçalves
Especial para o Correio
Por trás dos 54 anos de experiência, há quase quatro séculos de tradição na arte de fazer rir. Em 2012, o palhaço italiano Leris Colombaioni reproduz os mesmos tropeções, quedas e trapalhadas que os antepassados dele. "O clown é uma arte como a música e a pintura, por isso tem regras", argumenta o descendente dos Delacqua e Travaglia, duas famílias da commedia dell;arte. O ABC do riso é composto primordialmente pelo trabalho corporal, isto é, a pantomima, aliada à paródia e à música ; "além de figurino e maquiagem, porque um palhaço sem sapatos é como um homem sem cabeça", define.
Em tempos de grandes espetáculos tecnológicos, como shows musicais, cinema 3D ou o próprio Cirque Du Soleil, com suas proezas inimagináveis para a maioria dos mortais, os Colombaioni empregaram técnicas seculares para emocionar pais e filhos que lotaram a Sala Plínio Marcos, da Funarte, na última quinta-feira. A sessão única de Um pouco de tudo, praticamente nada marcou mais uma passagem da família pelo Sesc FestClown. O mesmo espetáculo foi apresentado durante a primeira visita de Leris ao Brasil, em 1998, acompanhado pelo pai, Nani Colombaioni (morto em 1999), palhaço eternizado nos filmes de Federico Fellini.
Ao lado dos filhos Lenny e Barry, Leris, 59 anos, é um dos últimos exemplares do clássico palhaço, que lança mão do controle facial e corporal como o principal instrumento de expressão artística, em detrimento da palavra. Quando preservada, essa herança da commedia dell;arte permite que a linguagem do palhaço seja universalmente compreendida. "Apresentamos em italiano no mundo inteiro, mas todos entendem, porque o que menos importa é a fala", conta Leris, sem economizar os amplos movimentos de braço, mesmo fora de cena.
Durante o verão italiano, a família Colombaioni comanda o Circo Ercolino, instalado em Netuno, na costa do Mar Mediterrâneo. Herdeiro de uma tradição popular que remonta à commedia, o circo foi uma das principais formas de entretenimento antes do surgimento do cinema e da televisão. No mundo moderno, o pequeno Ercolino ensaia uma ressignificação da arte circense e, por conseguinte, do palhaço. Além de diversão, Leris conta que seu público busca conselhos e compartilhamento de experiências. "O circo tem também a função de agregar pessoas no mesmo plano. Nele, ninguém é mais ou menos importante. Mas essa forma está desaparecendo e isso é a tragédia", lamenta.
Tradição
Leris estreou no picadeiro em 1958, aos 5 anos, em um subúrbio de Roma. "Quando recebi a proposta do meu pai, aceitei sem saber ao certo do que se tratava", recorda-se. Naquele dia, dois momentos marcaram a memória dele: primeiramente, o medo que sentiu diante dos rostos felizes que o olhavam das arquibancadas; depois, o nome de palhaço que usou apenas durante a sua estreia, Gianduia, em referência à máscara da commedia dell;arte. Como o público não entendia, o pai logo o rebatizou como Ercolino, nome de um brinquedo popular italiano semelhante ao joão-bobo brasileiro.
A vida no circo foi uma grande escola. "Meu pai sempre me falava: olhe, escute. Cada dia era um aprendizado para mim." Além de dedicar-se às apresentações no circo, Leris e sua família trabalhavam em teatros e cinemas para complementar a renda. O pai dele, Nani Colombaioni, participou de muitos filmes de Fellini. "Para nós, ele era apenas um diretor. Apenas 20 anos depois, compreendi que se tratava de um gênio", ri. "Lembro da primeira vez que assisti a Os palhaços (1971), transmitido por um canal da televisão italiana. Eu não gostei porque não o achei verdadeiro. Hoje, entendo que o mestre Fellini não falava de uma verdade absoluta, mas questionava se o clown estava vivo ou morto dentro do circo", completa. O cineasta retratou em seu filme uma época em que o palhaço perdia espaço no picadeiro. Para Fellini, a figura estava fadada à extinção.
Após um intervalo que ultrapassa 40 anos, Leris observa que o clown se libertou do picadeiro e resistiu ao tempo, mas sob formas cada vez mais distantes daquele tipo clássico. Contudo, para ele, a historicidade da personagem é imprescindível nos cursos de formação de palhaço. "Leris, eu pensei que fazia palhaço há 20 anos. Trabalhando com você eu vi que durante todo esse tempo o que eu fazia era outra coisa", desabafou um aluno durante uma das oficinas de Palhaçaria Clássica no Brasil.
Mestres
Há mais de 14 anos, Leris atua como mestre na preparação de novos clowns pelo Brasil. Além de ministrar cursos e oficinas, ele dirigiu espetáculos de grupos como La Mínima, Teatro de Anônimos, Seres de Luz e Lume Teatro. Entre os palhaços brasileiros, Leris notou uma grande influência do clown norte-americano, o que atribui a um período de interrupção na transmissão de ensinamentos. "Houve uma época em que importantes palhaços, como o Picolino, pararam de trabalhar. Então uma geração inteira não pôde aprender com esses mestres", explica.
Leris conta que algo semelhante aconteceu na Europa entre 1970 e 1990. "Em razão de dificuldades financeiras, circos que tinham quatro clowns passaram a ter apenas um", comenta. Para sobreviver, o pai e os tios dele buscaram alternativas e, por conseguinte, contribuíram para a introdução do palhaço no teatro. "Eles quebraram a parede imaginária que existia entre o palco cênico e o público. Dessa maneira, o espectador podia não só olhar, mas sentir. Isso fez com que as pessoas se apaixonassem novamente pelo palhaço", conclui satisfeito.