Tudo começou em 1961. Sérgio Cabral trabalhava no Jornal do Brasil, no Rio de Janeiro, e sempre era escalado para cobrir o carnaval. Entre confetes, serpentinas e máquinas de escrever, surgiam artigos sobre as escolas de samba. Tempos depois, ele foi para o periódico Folha da Semana e a série continuou. ;Eu gostava de fazer aquelas pesquisas. Tinha certeza de que era uma coisa pioneira, que até então ninguém tinha feito;, comenta Cabral.
Entrevistas em ensaios de escolas de samba, botecos ou na casa dos músicos revelavam os bastidores do samba. Por exemplo: ;Noel (Rosa) foi meu parceiro em várias músicas. Inclusive, gravei o disco cantando com ele. Diariamente, estávamos juntos eu, ele e Francisco Alves. O Chico me apresentava nos shows como o braço direito dele. Eu entrava no palco e ele levantava meu braço: ;Este é o meu braço direito. É um preto de alma branca;. Isso é que eu não gostava. Até hoje não entendo esse negócio de ;preto de alma branca;;, revelou Ismael Silva em um dos bate-papos.
O depoimento está no livro Escolas de samba do Rio de Janeiro. A raridade foi lançada em 1974 com o título As escolas de samba do Rio de Janeiro: o quê, quem, como, onde e porquê e estava esgotada há anos. De volta às prateleiras pela Lazuli/Editora Nacional, a obra de Cabral vem atualizada e ilustrada com fotografias antológicas ; como Heitor dos Prazeres vestido de baiana ou Grande Otelo ao lado de Juvenal Lopes antes de um desfile ; e com documentos históricos, como o papel timbrado que comprova o surgimento da Estação Primeira de Mangueira, em 1929 (e não em 1928, como alguns acreditam).
Dividido em três partes, o livro mostra em 13 capítulos a origem das escolas, os sambas e suas transformações: o surgimento do samba-enredo como é conhecido hoje (antigamente, a segunda parte da música era cantada no improviso), a mudança dos desfiles da Praça Onze para o Sambódromo e a revolução feita pelo carnavalesco Joãosinho Trinta na folia carioca. Na seção Os personagens, histórias e ;causos; do universo do samba são revelados em 17 entrevistas com bambas como Mano Décio da Viola, Candeia, Zé Keti, Cartola, Dona Ivone Lara e o já citado, Ismael Silva.
Na ponta do lápis
Na última parte do livro, Resultados dos desfiles, Sérgio Cabral corrige alguns enganos reproduzidos ao longo dos anos e faz um registro definitivo com as colocações dos desfiles do carnaval carioca de 1932 a 2011. O ;catálogo; inclui as classificações dos grupos de acesso (conjunto de escolas de samba que não fazem parte da desfile principal) e a participação especial das agremiações Acadêmicos do Grande Rio, Portela e União da Ilha, no ano passado, quando chegaram à Apoteose apenas com parte das alegorias, destruídas em um incêndio na Cidade do Samba, um mês antes do carnaval.
;Na verdade, as grandes fontes de pesquisa são os jornais, não tem jeito. Porém, nem sempre eles contam a verdade. Isso é uma dificuldade não só desse livro, mas com dos outros que eu fiz. Por exemplo, reparei que na década de 1930 os ranchos eram mais importantes do que as escolas de samba e, assim, os jornais não se dedicavam para dar os resultados corretos das escolas. Mas corrigi isso com o tempo;, comenta Cabral sobre os desafios na criação de Escolas de samba do Rio de Janeiro.
Amizade que deu samba
Com o prefácio original de Lúcio Rangel, escrito em 1974, a obra também traz um texto do cantor Martinho da Vila. Amigos de outros carnavais, Martinho já cantou músicas de Sérgio Cabral (Andando de banda e Visgo de jaca, ambas com Rildo Hora) e foi entrevistado pelo colega, que foi o autor do prefácio do livro Martinho da Vila: Tradição e renovação. ;Martinho é meu amicíssimo. Se eu tivesse que reduzir o Brasil a um ser humano, esse ser humano seria ele. Martinho é um cara fantástico. Admiro tudo dele: a obra, a vida. É um cara muito bacana;, elogia Cabral.
ESCOLAS DE SAMBA DO RIO DE JANEIRO
De Sérgio Cabral. Lazuli/ Editora Nacional. 496 páginas. Preço médio: R$ 50.
Lembranças inesquecíveis
Envolvido há mais de 50 anos com o carnaval e com o samba, Sérgio Cabral já perdeu a conta de quantos desfiles assistiu. Porém, alguns são memoráveis. ;Tenho alguns desfiles inesquecíveis, como o 1966, por causa de uma cena que vi. O enredo da Mangueira era sobre o maestro Heitor Villa-Lobos. Eu estava cobrindo o evento e quase na minha frente, do outro lado da arquibancada, estava a Dona Lindinha, viúva dele. Estou até emocionado ao lembrar. Os integrantes da escola de samba pararam na frente dela e ela começou a chorar. Dona Lindinha fez um gesto como quem queria abraçar toda Mangueira. Outro que não esqueço, foi o desfile da Beija-Flor com o enredo Ratos e urubus, larguem minha fantasia, com a ala dos mendigos, criada por Joãosinho Trinta, em 1989. Aquilo foi inesquecível, fantástico;, revela.
Leia trechos do livro ESCOLAS DE SAMBA DO RIO DE JANEIRO, de Sérgio Cabral.
Entrevista de Sérgio Cabral com Carlos Cachaça
Sérgio Cabral: E como surgiu o apelido de Carlos Cachaça?
Carlos Cachaça: Noutro dia, um jornal contou que meu apelido nasceu aqui em Mangueira, porque eu pegava uma cana violenta. Realmente, sempre bebi muito, mas meu apelido não nasceu na Mangueira, não. Havia na antiga Rua Senador Eusébio, na Praça Onze, um tenente do Corpo de Bombeiros chamado Couto. Tenente Couto. Ele era muito folgazão, gostava de cantar, aquela coisa toda. Quase todos os domingos era feijoada com cerveja preta. A cervejaria era ali mesmo na Praça Onze. Toda vez que vinha uma cerveja, eu recusava: ;Não, obrigado. Quero uma cachaça, uma cachacinha;. No grupo que frequentava a casa dele, havia três pessoas com o nome de Carlos. Quando eu demorava a chegar, ou não ia, o tenente Couto perguntava: ;Cadê o Carlos?;. ;Está ali;, respondiam. ;Não, não é aquele não. É o da cachaça. O Carlos Cachaça;;. Foi assim que eu fiquei Carlos Cachaça.;
Entrevista de Sérgio Cabral com Candeia
Sérgio Cabral: Mas seu pai era da Portela.
Candeia: Era. Meu pai foi o fundador da comissão de frente das escolas de samba. Não sei você sabe, mas a Portela foi a primeira escola a apresentar comissão de frente, ou seja, um grupo de pessoas desfilando na frente, representando a diretoria da escola. Aliás, eu fico magoado porque vejo uma criação do velho praticamente abolida das escolas de samba.