Um mês depois, em 9 de outubro, Dani;le morreu de câncer em Cholet, na França. Acabava ali uma das parcerias (e histórias de amor) mais intensas do cinema do século 20. Por mais de 40 anos, Straub e Huillet traçaram uma trajetória que ainda impressiona (e, como no caso de Veneza, choca) por defender uma arte radical e política, em oposição ferrenha aos esquemas de produção capitalistas. Recentemente, quando questionado por um jornalista sobre a necessidade de resistir ao cinema industrial, Straub (hoje com 79 anos) sacou uma resposta curta: ;Custe o que custar;. A Mostra Straub-Huillet, que começa amanhã no CCBB, com entrada franca, apresenta uma filmografia que se manteve à margem ; em muitos momentos, até por uma questão de princípios ; do circuito de exibição.
Para o cinéfilo brasiliense, é rara a chance de descobrir títulos de difícil acesso, admirados por mestres como Glauber Rocha, Wim Wenders, Fassbinder e, mais recentemente, o português Pedro Costa, que filmou o método do casal em Onde jaz o teu sorriso? (2001). O ótimo documentário faz parte de uma programação que inclui 26 dos 29 filmes do casal, realizados entre 1962 e 2006. Complementam a retrospectiva os nove curtas assinados por Straub entre 2006 e 2011. ;O que nos interessa é a maneira de abordar o cinema que eles propuseram ; o rigor das escolhas, a persistência que tiveram e a liberdade que se deram para abrir espaço para fazer seus filmes;, explicam os curadores Fernanda Taddei e Ernesto Gougain, em entrevista por e-mail ao Correio. Os títulos terão projeção nos formatos em que foram concebidos: 16mm, 35mm e Betacam.
Na contracorrente
Rigor, liberdade e persistência são palavras que também explicam por que o cinema de Straub e Huillet sempre provocou tanta controvérsia. Nos anos 1960, eram frequentes as discussões em festivais por conta das ousadias que tomavam ao adaptar livros e peças ; de forma singular ; ou expor ideias que chocavam a opinião pública. Seja ao dedicar um filme sobre Bach aos vietcongues ou provocar conflitos de ideias entre as revistas de cinema mais cultuadas do período ; a Cahiers du Cinéma e a Positif ;, eles definiram um estilo que se tornou tema de livros (de intelectuais como Gilles Deleuze) e ensaios acadêmicos. Mas que, ao contrário do que aconteceu com Godard e Pasolini (outros provocadores de primeira linha), nunca encontrou plateia suficientemente numerosa para garantir repercussão ampla das obras.
Até nas cinematecas, os filmes de Straub-Huillet são recebidos sem unanimidade. Não são poucos os que encontram dificuldades para acompanhar as cenas longas e silenciosas, com imagens fixas de paisagens da natureza ; que ganharam o apelido de ;plano straubiano;. O dramaturgo Bertolt Brecht e o cineasta Robert Bresson volta e meia aparecem em artigos sobre o casal, que se conheceu em 1954, como referências para um cinema de imagens austeras e discurso contestador. Mas o casal, além de dialogar furiosamente com as obras que adapta (e todos os filmes que dirigiram são adaptações; de livros, peças, óperas, composições musicais), também indicou relações com cinema clássico (de John Ford e Griffith), filosofia, teatro e música clássica.
;Cada espectador tem a liberdade para estabelecer com os filmes a relação que quiser. Com os filmes e com as obras precedentes, que foram seu ponto de partida ; a obra deles é linda também porque abre portas a uma série de outras obras belíssimas;, afirmam os curadores.
Em longas como Crônica de Anna Magdalena Bach (1967) e Relações de classes (1983), os cineastas criaram uma série de marcas que são associadas ao estilo da dupla (ainda que esse cinema tenha se transformado no decorrer do tempo): a rejeição a manipulações de imagens na fase de pós-produção, as experiências no tom da atuação do elenco (nem naturalista, nem teatral) e a atenção e o respeito por elementos da natureza. ;É isto que é real: quando uma nuvem passa, ela se move, as coisas mudam e variam;, dizia Straub. O que há de essencial no cinema do casal talvez seja simples ; e desafiador ; assim.
MOSTRA STRAUB-HUILLET
De amanhã a 22 de janeiro, na sala de cinema do Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB). Amanhã, exibição dos filmes Machorka-Muff, Não reconciliados e O noivo, a atriz e o chulo, às 17h; Lições de história, às 19h; e Crônica de Anna Magdalena Bach, às 21h. Acesso livre, com distribuição de senha. Não recomendado para menores de 14 anos.
Não perca
Crônica de Anna Magdalena Bach (1967)
No longa mais conhecido do casal, episódios da vida do alemão Johann Sebastian Bach são descritos por um viés singular: a música, interpretada pelos atores em cenas longas, torna-se um elemento fundamental da narrativa. As experimentações de Straub e Huillet começavam a inspirar toda uma geração de cineastas dos anos 1960. Amanhã, às 21h, e sábado, às 16h30.
Relações de classes (1983)
Após um longo intervalo sem filmar em alemão, a dupla retornou ao preto e branco dos primeiros longas com uma adaptação espantosa de Amerika, o romance inacabado de Franz Kafka. As imagens secas descem ao inferno das relações sociais, mostrando os efeitos físicos e emocionais do trabalho industrial. Exibido no Festival de Berlim. Quinta-feira, às 16h30, e sábado, às 20h30.
Cedo demais/ Tarde demais (1980)
Um filme que, em muitos aspectos, condensa com muita precisão os temas políticos da obra de Straub e Huillet: o discurso marxista (em ensaios de Friedrich Engels e do egípcio Mahmoud Hussein) é sobreposto a imagens do campo, de pessoas comuns andando nas ruas e de trabalhadores deixando uma fábrica. Quarta-feira, às 17h, e domingo, às 16h30.
Não reconciliados (1964)
O primeiro longa de Straub e Huillet provocou escândalo quando exibido no Festival de Berlim. O texto de Heinrich B;ll, que acompanha várias gerações de uma família alemã, é narrado de forma tão fragmentada ; como num jogo ; que os editores tentaram impedir a circulação do filme. A reflexão sobre vingança e lealdade não perdeu o impacto. Amanhã, às 17h, e quinta-feira, às 19h.
Os olhos não querem sempre se fechar (1969)
O primeiro filme colorido da dupla representou uma ruptura importante para os diretores: a partir dele, seria frequente no trabalho dos diretores o contraste entre passado (o mundo antigo) e presente (a Europa pós-anos 1960). Em cena, atores vestidos em figurino de época contracenam com anônimos de Roma. O texto adapta a peça Othon, do francês Pierre Corneille. Quarta-feira, às 21h, e sexta-feira, às 17h.