De tanto ouvir falar na novidade musical da temporada ; uma tal de bossa nova ;, os editores da revista Cruzeiro resolveram produzir uma reportagem sobre o tema. Era finzinho de 1959. De pronto, foram convidados Tom Jobim, João Gilberto, Luiz Bonfá e o compositor veterano Ary Barroso, que admirava o som dedilhado pela meninada da Zona Sul carioca. A conversa estava boa quando Ary perguntou a Carlos Lyra sobre o significado daquele ;movimento;. Mas foi Ronaldo Bôscoli quem saiu com a resposta:
; Filosoficamente, bossa nova é um estado de espírito.
Lyra, dizem, se contorceu no sofá ao ouvir o comentário. Não gostava quando o amigo vinha com definições ;amadoras; para o termo. Preferia tratar a bossa nova simplesmente como uma maneira de fazer música, defendida por jovens de classe média e influenciada pelo período de desenvolvimento do governo JK. Mas, se a batida era mesmo um ;estado de espírito;, poucas pessoas incorporaram essa aura de forma tão completa quanto o próprio Bôscoli.
Um dos letristas de maior sucesso do período, coautor de clássicos como O barquinho (com Roberto Menescal) e Lobo bobo (com Lyra), ele lutou com fanatismo pelo reconhecimento de uma geração de músicos jovens. De tal forma que ganhou o apelido de Avante, a marca de um caderno escolar cuja capa trazia o desenho de um grupo de escoteiros carregando a bandeira brasileira. A faceta de divulgador tenaz da música brasileira é, no entanto, apenas um dos traços de uma das personalidades mais complexas da cultura brasileira.
A trajetória ; sempre muito movimentada ; de Ronaldo Fernando Esquerdo e Bôscoli (1928-1994) é revista na biografia A bossa do lobo (editora Leya), do escritor paraense Denilson Monteiro, criado no Rio desde pequeno. O livro, com 47 capítulos e 511 páginas, reconstitui alguns dos principais episódios da música brasileira da segunda metade do século 20 e esclarece aspectos delicados da vida do compositor. O primeiro capítulo, por exemplo, abre com uma das crises de angústia que acometiam o carioca. ;Colocar os pés na rua era uma luta diária para ele;, escreve Denilson, 44 anos.
As fobias de Bôscoli não parecem combinar com a imagem do homem galanteador, tiete obsessivo de Frank Sinatra, que, nos anos 1960, virou pelo avesso a noite carioca. Certa vez, Nelson Rodrigues, colega de redação da revista Manchete Esportiva, aceitou o convite do músico para conhecer uma casa noturna. O cronista saiu de lá abismado ; e um tanto zonzo, já que o boêmio temperou a laranjada do escritor com doses de vodca. As crises depressivas, que provocaram uma internação quando tinha apenas 23 anos, também não prejudicavam a fama de mulherengo: namorou Nara Leão e levou Elis Regina ao altar.
Um grande parceiro era Roberto Menescal, que o apresentou ao grupo de músicos que, reunidos no apartamento de Nara, transformavam samba e jazz numa bossa diferente. Com Luiz Carlos Miele, outro cúmplice, criou os grandes shows de Roberto Carlos no Canecão. Mais tarde, escreveria roteiros para a tevê (em programas como o Fantástico, da TV Globo). E antes de tudo isso, na juventude, foi com José Ayres que jogou futebol na areia de Copacabana, ainda sem saber muito bem o que queria da vida ; estudar era que não.
Veneno doce
Adolescente ;até morrer;, Bôscoli podia ser amável (com os amigos) e venenoso (às vezes até com os mais chegados). Adorava espezinhar as pessoas com comentários malévolos. Era malandro (no bom sentido) quando mudava as regras do marketing musical, por exemplo. Uma das sacadas espertíssimas foi mostrar, numa reportagem da revista Manchete, Helô Pinheiro como a musa de Garota de Ipanema, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes. Deu certo. Criar fofocas sobre falsas brigas entre astros também virou especialidade do produtor. Um legado que, para o bem e para o mal, perdurou na nossa indústria musical.
;Infelizmente, Bôscoli ainda é visto como o homem que namorou mulheres muito desejadas e que tinha um humor ferino. No entanto, percebo que o livro está ajudando a mudar essa imagem. Muitos leitores têm comentado comigo a surpresa em saber o quanto Ronaldo fez;, explica Denilson, em entrevista ao Correio. Autor de Dez, nota dez! Eu sou Carlos Imperial, publicado em 2008, o escritor também participou das pesquisas para as biografias Vale tudo, o som e a fúria de Tim Maia (2007), de Nelson Motta, e Minha fama de mau (2009), com as memórias de Erasmo Carlos.
Tanto Carlos Imperial quanto Tim e Erasmo viveram histórias que, de alguma forma, incluíram Bôscoli. Difícil encontrar alguma personalidade da MPB que tenha conhecido o compositor. Nas páginas de A bossa do lobo, ele aparece como uma figura influente e polêmica, capaz de flutuar sobre a história da cultura nacional, sempre no lugar certo ; mesmo quando, nos momentos mais terríveis de angústia, a terra parecia tremer.
A BOSSA DO LOBO ; RONALDO BÔSCOLI
De Denilson Monteiro. Editora Leya, 511 páginas. R$ 44,90.
Quatro perguntas para
// Denilson Monteiro
Antes de A bossa do lobo, você escreveu uma biografia sobre Carlos Imperial. Como os livros se complementam?
A ligação entre os dois livros é realmente grande. Bôscoli foi um personagem no Dez, nota dez! Eu sou Carlos Imperial e o Imperial também está presente em A bossa do lobo. É muito interessante a conexão entre Imperial e Bôscoli, suas histórias sempre se cruzaram. Imperial foi o responsável pelos primeiros discos de Wilson Simonal, Roberto Carlos e Elis Regina, que depois de um tempo acabaram trabalhando com Bôscoli. Tenho uma gravação de um dos shows de bossa nova apresentados pelo Ronaldo num colégio do Rio de Janeiro em que ele chama Roberto Carlos ; acompanhado de seu protetor, Carlos Imperial ; para cantar Brotinho sem juízo (de Imperial).
Como foi o processo de condensar uma personalidade tão complexa dentro de uma biografia?
Um prazer e uma agonia. Foram dois anos e oito meses de trabalho quase que ininterrupto, com várias idas à bibliotecas, entrevistas, consultas a acervos na internet ; e a escrita. Essa última é sempre a tarefa mais complicada, pois não basta colocar todos os fatos em ordem cronológica e entregar à editora. É preciso um texto que prenda o leitor, que faça com que ele não largue o livro. Contudo, numa biografia, não se pode contar com o recurso de criar um fato interessante para fazer com que a história fique melhor, uma vez que só se pode usar o que realmente aconteceu. Felizmente, uma vida como a do Bôscoli é suficientemente rica para provocar esse encantamento no leitor.
Até que ponto as pesquisas para o livro alteraram as suas impressões sobre Bôscoli?
Eu imaginava que Bôscoli era um homem de partir para confrontos físicos, um Norman Mailer carioca. Mas descobri que seus embates eram apenas verbais.
O livro mostra com detalhes as crises de neurose que atormentavam Bôscoli. Como você chegou aos detalhes sobre esse aspecto não muito conhecido da vida dele?
O lado mais complicado foi encontrar o registro de internação do Ronaldo, pois ele não existia. Por sorte, consegui achar uma pessoa que esteve internada com ele e que confirmou a história que ele contava. Eu precisava mostrar ao leitor essas crises dele, assim como as demais características de sua personalidade para mostrá-lo da maneira mais fiel possível. Ao que parece o objetivo foi alcançado, já que todos os dias recebo um telefonema de algum amigo dele me dizendo que encontrou o Bôscoli no livro.