Luiz Alphonsus é um cara da geração 1970 e gosta muito disso. Aos 63 anos, usa cabelo comprido, preso em rabo de cavalo e, quando escreve, lembra aquelas figuras que andavam pelas praias cariocas a repetir ;bicho; pra cá e ;bicho; pra lá. Bem, não há tanto bicho assim (na verdade, não há nenhum) em Feras selvagens correm por entre as estrelas, mas há muito do espírito de uma época embutido em linguagem espontânea e nada formal.
O livro parece um álbum de colagens e chega às mãos dos leitores lapidado pela mente de um artista plástico. Alphonsus está entre os nomes que fizeram a vanguarda carioca da década de 1970. Encantado por qualquer coisa que dissesse respeito ao cosmos, incorporou o tema ao trabalho. Há um pouco de reflexão sobre o universo em tudo que sai do ateliê dele e talvez isso justifique as estrelas do título do primeiro livro de ficção.
Da turma de Cildo Meireles e do músico Guilherme Vaz, com os quais conviveu durante os oito anos passados em Brasília entre a infância e adolescência, o autor resolveu publicar o livro porque pensou ver no conjunto de narrativas a pequena história de uma época. Feras selvagens correm por entre as estrelas não cabe em descrições convencionais. Tem muito de autobiográfico, nada de sequencial e está mais para crônicas, embora haja uma unidade e boa dose de ficção. Alphonsus dá um jeito de fazer pairar na cabeça do leitor uma dúvida intrigante quanto à veracidade dos fatos. E muitos deles lembram um pouco a trajetória do artista. Seriam, na definição do autor, ;contos, relatos e historietas;.
;O livro em si é um depoimento ficcional, onde o autor e o personagem se misturam. É, na realidade, um grande livro de depoimentos, uma mescla;, explica. ;É autobiográfico e não é. Fica sempre dançando, você nunca sabe onde estão o personagem e o autor do livro, esse é o grande truque. O tempo todo você não sabe o que é real e o que é ficção.;
A linguagem é algo bem real. De tão real, às vezes provoca o leitor com dúvidas sobre a coerência e coesão textuais. Mas é de propósito. Alphonsus ;sobrinho-bisneto do romancista Bernardo Guimarães e filho do poeta Alphonsus de Guimarães Filho ; colocou no papel a própria experiência de vida e ela passa pelo desbunde e pela vanguarda dos 1970, por Brasília recém-nascida e pelas artes plásticas. Há dois textos feitos para instalações e perfeitamente encaixados no conjunto.
;Esse livro é todo referenciado na década de 1970. Fiz com o maior prazer, sem pressão. Ele é totalmente solto, sem amarras, apesar de ter essa carga do nome da família. Escrevo até mais solto do que é meu trabalho de arte;, compara. Escrever é descanso para o artista. Acontece, normalmente, quando está no ateliê, exausto depois de conceber algum trabalho. A escrita relaxa e transporta a mente para outro tipo de exercício. E aí Alphonsus se solta em frases como ;com os meus amigos comecei a enfrentar o perigo das mulheres;.
Rio de Janeiro e Brasília são cenários constantes das histórias. Assim, há a empregada convertida em prostituta graças aos conselhos do artista e a moça da ZBM (Zona do Baixo Meretrício de Brasília, na época da inauguração) carente de cafetão e apaixonada pelo narrador; ou as farras regadas a álcool e maconha na casa de amigos artistas na capital fluminense e a vida pacata de bicho-grilo em casinha simples no litoral do estado, antes de os morros serem invadidos e a violência acabar com o idílio.
Feras selvagens correm por entre as estrelas não é um exercício literário, está mais para uma experiência livre. Liberdade, aliás, que Alphonsus pratica com a mesma ênfase no papel e nas artes plásticas.
FERAS SELVAGENS CORREM POR ENTRE AS ESTRELAS
De Luiz Alphonsus. Record, 272 páginas. R$ 39,90.
Três perguntas - Luiz Alphonsus
Como é o diálogo com as artes plásticas na sua escrita?
A gente tem várias cabeças, somos vários. A escrita e a arte são duas áreas que separam dentro da gente. Tem a questão visual, o pensamento, e a questão do texto. Eu escrevo assim: estou dentro do meu ateliê e quando me canso, escrevo porque descansa minha cabeça, vou para outra área do cérebro que não é aquela das artes visuais. O texto é outra área do ser. E se você tem a capacidade, você deve escrever, principalmente os artistas e músicos que lidam com essas coisas. Me descansa profundamente do dia a dia, das coisas que tenho que lidar profissionalmente dentro das artes plásticas. Com o passar dos anos, o que uma atividade artística se torna? Extremamente profissional e você luta para que isso não aconteça e não destrua o teu trabalho. E o texto para mim é um espaço mais solto. Daqui pra frente, vou escrever para o resto da minha vida.
Brasília foi importante para você? Como?
Tenho uma experiência única na minha vida, tão marcante que não esqueço: vi a cidade sair do chão. Fui em 1961 e passei o primeiro aniversário de Brasília na cidade, onde morei até 1969, durante oito anos. Fui aos 12 anos e saí com 21. Comecei a faculdade (UnB) e larguei. Como toda a minha geração, abandonamos. Hoje, os artistas têm essa preocupação com a formação acadêmica. A minha geração inteira abandonou a faculdade e uma das razões é que era uma época muito dura de repressão e ditadura militar e queríamos ser artistas. E ninguém retomou a faculdade. Não me formei, larguei a arquitetura e fui ser artista.
Não quis retomar depois?
Não interessava. Minha geração é diferente, era outra época e essa coisa da repressão, da ditadura era muito presente. Então, a universidade perdeu o interesse. E ninguém precisava se formar para ser artista. Hoje, também, não precisa, é mais uma questão profissional, pela sobrevivência. Na realidade, o que você faz para ser artista? Tudo que não te ensinam numa faculdade. Sou totalmente geração 1970 e essa linguagem é a linguagem que sei fazer. Escrevo assim, não tenho dificuldade para escrever. É uma linguagem solta.
Trecho de Feras selvagens correm por entre as estrelas:
Era um dia que resolvemos comemorar alguma coisa, não tinha importância o quê, o fato assim de podermos nos encontrar uns com os outros era o bastante. A casa era grande, mas Kátia resolveu convidar quase todo o Rio. Começamos a beber.
A festa rolava sem incidentes. Nem parecia que tinha tanta gente, pois várias pessoas chegavam, saíam e voltavam num movimento sem fim. Mas Kátia tinha me reservado uma surpresa. É que ela pensava em ficar sempre comigo, mas não dava, nossa amizade e aprontação, ela roubou fotos do meu arquivo pessoal, onde eu tinha imagens de inúmeras mulheres: umas fotografadas profissionalmente e outras de forma amadora, como minhas amigas e namoradas. Colocou tudo num DVD e ficou aguardando algum momento dentro da sua cabeça. Junto disso, ela convidou várias ex-namoradas minhas, que começaram chegar.