A inexistência de um homem em cena, a não ser na pintura mitológica de Nicolas Poussin (que retrata Midas e Baco e enfeita o ambiente), com expresso interesse em dissecar modulações de comportamentos femininos, logo facilita a comparação: o cineasta bávaro Rainer Werner Fassbinder poderia muito bem ter bebido, ao criar o longa As lágrimas amargas de Petra von Kant, do universo do alto especialista das personagens femininas George Cukor (célebre pelo sessentista Minha bela dama e por As mulheres, de 1939). Facilidade, entretanto, não é palavra que combina com o mais proficiente dos autores de cinema alemão, que, morto há quase 30 anos, parece coexistir com os colegas, ainda bem vivos, Werner Herzog e Wim Wenders. Adaptação de um texto teatral de autoria própria, As lágrimas amargas de Petra von Kant, que finalmente sai em DVD, comprova a longevidade da obra.
Referência com mais sentido, ao decifrar o filme de 1972, estaria em alinhá-lo com Douglas Sirk (pelo preciosismo imagético e pela, no caso dele, comedida pitada de melodrama). ;Nós apegamos mais à importância do prazer do que à fidelidade;, conta a protagonista (Margit Carstensen), em torno da relação falida com o ex-marido, logo de partida. A impiedosa passagem do tempo, ainda mais sublinhada no desfecho (em que Petra não celebra o aniversário) e uma percepção tardia de valores pessoais deturpados (daí, parte do paralelo com a ganância estéril de Midas) trarão consequências para tal hedonismo.
Numa vida confortável, Petra, que é dona do prestígio de ser uma renomada estilista, vive de um glamour oco e se alimenta da sádica dominação exercida sobre Marlene (Irm Hermann), tratada como uma subserviente. Saído da experiência de fundar um movimento batizado de Antiteatro (na companhia de atores como Kurt Raab e Hanna Schygulla), o diretor alemão, cooptado para o audiovisual, na turbulência dos anos de 1968, oferece um espetáculo muito próximo daquele proposto pelo dramaturgo Henrik Ibsen, na inesgotável mesquinhez da personagem-título Hedda Gabler.
Transbordante e irado, o discurso se distancia do compromisso social mantido por Fassbinder com o compatriota Bertold Brecht. Manipuladora, Petra (já encenada magistralmente nos palcos nacionais por Fernanda Montenegro) parece atrair para o covil do quarto (o único espaço cênico, por sinal) criaturas da própria laia, à exceção da filha e da mãe dela, essa desavisada da ;peculiaridade; de ter gerado uma descendente lésbica. Em posição de comando e de pretensa superioridade, lânguida, Petra cria, em torno de si, uma atmosfera de desfile: sem os desdobramentos de uma real interação, convivem com ela, a amiga Sidonie (Katrin Shaake), madura e plena de dissimulação, e Karen (Hanna Schygulla), dona de uma beleza demoníaca e a postos para se render ao ;aprendizado do prazer feminino; propalado por Petra. Sobrevivente de série de experiências fúnebres, Karin sinaliza certa redenção para von Kant.
Manequins animados
Diretor de fotografia talhado pela arte de Fassbinder, Michael Ballhaus (que depois se estabeleceu na trupe de Martin Scorsese) sabe tirar proveito de um plano estático ; no qual, em cena, meros manequins parecem duelar com a anima reinante ; e afirmativo para a tensão enervante aliada à violência mais psicológica defendida pelo mestre germânico.
É interessante notar que o filme foi lançado em clima culminante para a esfera pessoal de Fassbinder, recém-divorciado de uma mulher (mesmo sendo, assumidamente, homossexual). Inusitada, com direito a Smoke gets in your eyes (The Platters) e The Walker Brothers, além de contemplar Verdi, a trilha sonora acirra a capacidade de desnortear, no provocativo filme em que o texto chega a exaltar a existência de ;negros de feição europeia;.
Sem a postura aguerrida, protuberante em filmes de temática gay como O direito do mais forte (1975) e Querelle (1982), o diretor ; que viria a morrer por overdose de cocaína, aos 37 anos, uma década depois ; deixa entrever uma certa afetação e uma dose de perturbação histérica (injetada nas personagens), no filme que se revela um ensaio sobre a dissolução do amor. No universo da disciplinada Marlene, uma aparente redoma defende e dá chão para a controladora Petra, que enuncia: ;Se você compreende alguém, não há porque ter pena dessa pessoa;.
Com homenagem direta ao clássico A malvada (de Joseph Mankiewicz), o cineasta reveste a protagonista de mimetismo (até físico), num recurso que evidencia a fase crítica (e interna) do desmoronar da condição extremamente cartesiana à qual sempre se pegou. Uma realidade de privação, definitivamente, ameaça a desesperançada protagonista, pronta para rever certezas rudes como a de que ;as pessoas são duras e brutais ;, todo mundo pode ser substituído;. Com habilidade, o diretor desestabiliza tais certezas.