Rio adentro nunca poderia ser um livro uniforme e regular. Quando Jorge Ferreira começou a editar os poemas que decidira reunir em livro percebeu o quanto os versos refletem sua própria maneira da viver. E ela não é nada regular. Pelo contrário, é marcada por fragmentos e contradições. Dono de 12 bares em Brasília e formado em sociologia, Ferreira há muito se embrenha pela escrita e faz isso por caminhos atropelados. O cotidiano atarefado nunca permite dedicação integral ou exclusiva e Rio adentro nasceu no meio da correria, ou melhor, da correnteza.
São poemas de formas variadas e conteúdos universais. Ferreira se espelha em Paulo Leminki para compor os haicais, retorna a Carlos Drummond de Andrade nas poesias mais longas e evoca a Minas Gerais da infância de propósito. Às vezes se coloca com mais personalidade, caso da pequena brincadeira Check in ; Diálogo de aeroporto. Com apresentação de Fernando Brant e prefácio do poeta Wilson Pereira, Rio adentro é também um livro despretensioso. ;Não tenho preocupação com reconhecimento acadêmico. Sou o que sou. Não tenho medo de me expor e, quando você escreve, você se expõe. Minha vida é completamente agitada. Consigo fazer várias coisas ao mesmo tempo e a poesia sempre foi uma parte importante da minha existência;, avisa o autor.
Há dois anos, Ferreira completou cinco décadas de vida e quis presentear os amigos com alguns escritos. Editou então um conjunto de crônicas e poemas que chamou de Fazimento. ;Foi uma brincadeira;, conta. ;Agora, resolvi encarar algo mais sério e fui salvo pelo computador. Sempre fui desorganizado, guardava tudo e as coisas sumiam, minha letra também é complicada. Aí veio o ;salvar como; e me salvou.; Passou então a ;praticar; a poesia com mais seriedade. ;E os poemas foram evoluindo. É um processo de criação e de deixar fluir, um afloramento que é fruto do meu próprio jeito de viver.;
Se uma parte da motivação vem das vivências cotidianas, outra certamente está sedimentada nas reminiscências da infância. Mineiro de Cruzília, Ferreira cresceu em ritmo de interior, em ambiente no qual a literatura era coisa presente. A vinda para Brasília em 1985 foi um marco. ;Aqui tive a oportunidade de conviver com grandes intelectuais;, diz. Entre 1997 e 1999 surgiu a primeira investida literária com a revista Tira prosa.
Dialética
Família, trabalho, amigos, amores e paixão pela vida formam o banquete do qual Ferreira extrai o conteúdo dos poemas. A liga é a contradição, ingrediente essencial para a vida no entendimento do sociólogo-empresário. ;Sempre trabalhei com a dialética como conceito de vida. O conflito é inerente. Não tem como evitar a dialética.; E a poesia também pode ser encarada como veículo mais imediato. Ferreira adora contos, mas sabe que esses pequenos relatos precisam de tempo para maturar. Cita Jorge Luis Borges para justificar: ;Ele dizia que, quando você abre a torneira, a água sai enferrujada e depois vai limpando. É assim com a escrita. O conto exige mais tempo e não tenho tempo para me dedicar à literatura;.
Para editar Rio adentro, o autor seguiu critérios estilísticos e econômicos. Não queria fazer um livro longo e achou adequadas as 96 páginas nas quais conseguiu assentar os poemas. ;Quis fazer algo que a pessoa pudesse ler rápido e voltar, porque a poesia você volta. E em um romance você não volta.; Agora, depois do lançamento, ele volta a se concentrar em outra vertente da escrita: há algum tempo Ferreira se dedica a letras de música. O poeta e amigo Caio Junqueira serviu de intermediário com ZeBeto Correia, que musicou Romã, um dos poemas do livro. Até 2012 haverá material suficiente para um disco. ;O importante é estar em contato com a escrita, sempre.;
Rio adentro - De Jorge Ferreira. Geração Eidtorial, 90 páginas. R$ 30. Lançamento hoje, às 19h, no Bar do Ferreira (Shopping Pier 21).
Confira alguns poemas do escritori:
Nos bares com homens esquecidos
Meus bares vão além das cidades em que vivi
Dos mais refinados aos mais simplórios
Nos subúrbios mais distantes
Todos, andarilhos errantes
Guardam meus íntimos segredos.
Em suas velhas mesas travei lutas
Por causas que me comoveram
Sentado com homens esquecidos
Fui eu mesmo naquele momento
Em que me perguntava quem eu era.
Com o coração na boca, o ardor juvenil
Entre cerveja, fumaça e esperanças
Passei tardes de janeiros
À espera de uma piscadela
De amores levemente prometidos.
Também convivi com seu entulho
Seu mundo canalha e sujo
Bares, assim é a sua existência,
É a sua essência
Atrás de sua porta de marfim, sob o
balcão de mármore
Deixei meu tempo sem nenhum remorso.
Viagem
Ao deixar o cemitério já cheio de saudade
Dei a debater comigo a noção de espaço,
Quinhão, distrito, cidade, município,
Estado, país, hemisfério, mundo.
Meu amigo viveu na vastidão, na largueza
do intermúndio
Sua imaginação tinha o tamanho do
planeta terra
Seu ser era largo, amplo, intérmino
Sem margem, sem termo, sem fronteiras.
Foi um homem de qualquer lugar
De telha abaixo foi a toda parte
Longe e perto, à direita e à esquerda
Pelo mundo afora a cada triquete.
Em todo recanto do globo meu amigo
Tinha um canto, um conto
Em qualquer parte, de vale em vale
Aos quatro ventos esvoaçavam os seus
longos cabelos.
Foi um homem aciganado
Europeu, asiático, africano, americano
Tratava tudo e a todos como próximos
do coração
Às vezes faltoso e longe dos olhos.
Éramos tão diferentes pessoalmente
Gosto de ser território, ter endereço
Sempre fui um morador de mim mesmo
Procuro ficar à espreita em afastamento.
Agora, depois de dar o corpo do amigo à terra
Fechar a laje sobre o túmulo
Enterrá-lo sob algumas leivas de argila
Uma luz suave banha o defunto na sepultura.
Para quem viveu à altura de arranha-céus
Nas entranhas do mundo,dilacerado entre
estações e tempo
A sua última morada terá: eternidade,
endereço fixo,
Inscrição tumular, epitáfio e placas
de sinalização.
Dentro do carro distante dali
Meu rosto recebe o resto de brisa
daquela tarde
Abrindo um espaço para o voo
A minha substância territorial se esfacela.
Há nesse instante uma tensão entre
nascimento e morte
De sentimentos inexistentes sonhos
se cruzam
Sem alarde quebra-se o corpo para
além dos ossos
A apatia antiga se esguia e o orgulho
é degolado.
Nasci um dia e uma vez basta
Agora, quero o espírito do rio,
espírito do mar.
Quero o espírito do meu amigo
ardendo a todo instante
Estou rumando à outra intensidade
em outra direção.
Não sei muito acerca dos deuses
e das cidades
Muito menos de fronteiras, só
sei que o rio
Que passa em minha cidade é
caudaloso e taciturno
Fiel às suas iras e épocas de cheias.
Começarei por ele a baldear as águas
mundanas mar afora
Só quero para mim o inesperado, o
fervor do momento
O momento dentro e fora do tempo
E que meu grito chegue a Ti, amigo!
Reminiscências
Hoje vou sair
Pôr minha véstia.
Um traje domingueiro,
Dar um presente.
Saudar o dia nascente.
Volver os olhos
D;alma.
Se é saudade, não sei.
Flores,
Ah! Preciso das bromélias
Elas caem no chão
Sem fazer alarde.
Segura, velho Sig,
Estou chegando.
Segura a infância,
As humanas lidas.
Espere mais um pouco.
Segura o luto, a luta,
As caspas em desuso,
A noite com os seus sustos.
Mãos sem tempo
Segura até o outono
Para pisarmos na grama,
Andarmos no telhado.
Com tua suave ironia
Passaremos a tarde
Buscando semente
E ao anoitecer plantaremos estrelas
Segura a aurora,
Os filhos,
Os netos,
A companheira de todas as horas.
Os amigos são pássaros,
Colheitas
Em abundância.
Eles a ti PERTENCEm.
Em teus noventa anos,
Anjo, não foste.
Também com o diabo
Não flertaste.
És homem exilado,
Sem saudade do céu.
Com teu olho claro
Enoiteceu sim, desde Niterói.
Na advocacia
Não forçaste a porta do dinheiro,
Com tua lanterna interior
Abriste a porta do cárcere.
Assim visto tem sido.
Rio do tempo,
Nas águas de tua sabedoria
Deslizam barcos e lendas.
Às margens desse rio
Estão os amigos,
Com o calor de quem ama
A garimpar esse diamante.
Menino ninho
O ar do tempo que respiro
Excita-me as narinas e a memória
Falar do meu arruamento interior
É galgar perigosamente
Minhas montanhas imaginárias.
No momento de sobressalto
De envelhecência
Sem o provimento de eternidade
Busco o menino em mim
Revivendo o vivido.
É preciso nesse assunto
Dormir em cima da inocência,
Entender de fuga,
Ir atrás do vento,
Ver onde ele faz a curva,
Imitar os passarinhos,
Também fazer seu ninho.
A estação tem sempre uma partida
Comecei pela casa paterna,
Com sua varanda de ladrilhos hidráulicos,
Pelo beijo da prima, os latidos da cachorrada
Não esqueci o amor de bananeira.
Riacho, arco-íris, pedra de atiradeira,
Velhas cantigas, santos na parede.
Uma saudade, um resto de alegria
Se queixando para dentro
Amor distraído de si.
Busquei esse menino
Em expressão absoluta
Desatento
Pensamento fugidio.
Depois,
Encontrei-o com voz límpida
Sentado na velha poltrona
Como um anjo a olhar
Velhas fotos emolduradas.
Daí em diante,
O tempo se fez noite
E a noite, medo.
No fosso das lembranças puras
Veio o corpo cinzelado na sala
E um cheiro de água-de-
colônia
No ar, nas roupas das pessoas.
Dissolveram-se os planos da memória
Não sabia se ambos estávamos vivos ou mortos
Eu e aquele corpo com as mandíbulas
Presas com lenços brancos
Sob olhar dos pecadores
Agora e na hora de nossa morte,
Amém...
Basta! Acabou a brincadeira.
Descobri que a infância
Como o corpo
Só se renova
Na alma.