Brian Wilson passou quase 40 anos tentando encontrar todas as peças que faltavam em um quebra-cabeça chamado Smile. “O disco estava me matando”, confessa. Quase. Idealizado como uma “sinfonia adolescente para Deus” e gravado entre 1966 e 1967, o álbum permanecia incompleto, e sem edição oficial, até 1º de novembro. Nesse dia, quando a coleção The Smile sessions chegou às megastores dos Estados Unidos, encerrou-se a odisseia: estava decretada a sobrevivência do ex-vocalista dos Beach Boys, hoje com 69 anos, a um impasse criativo que entrou para a história da música pop.
O próprio Wilson reage com desconfiança à ansiedade que a notícia do lançamento provocou na internet. Quando um jornalista inglês informou a ele que o projeto — uma caixa com cinco CDs, vendida a cerca de US$ 140 — estava muito bem posicionado entre os mais vendidos em sites de música, fez um comentário espantado. “Mas quem está comprando isso?”, resmungou.
Para aqueles que menosprezam o mito, tamanha popularidade também pode parecer exagerada: de onde vem o apelo de um álbum que, na prática, nunca ficou pronto? E, no mais, por que o interesse em ouvir faixas que, pirateadas desde os anos 1980, são amplamente conhecidas pelos fãs da banda californiana?
As respostas para essas questões confirmam, acima de tudo, a força de um disco que segue inspirando todo tipo de aventura pop. Mas também apontam para uma boa novidade: descontado o valor simbólico de The Smile sessions, a edição soluciona um enigma que sempre intrigou os discípulos de Wilson: os “rascunhos” sonoros desse álbum perdido, até agora desconectados uns dos outros, são organizados no formato de uma obra completa, com início, meio e fim. É esse o atrativo principal da versão simples do CD, que chega ao Brasil pela EMI: com 19 músicas, Smile ganha a estatura épica com que Wilson sonhava nos anos 1960. E soa como uma obra-prima.
A seleção de faixas obedece, com rigor, a concepção de Wilson. Em 2004, depois de sair numa turnê bem-sucedida, o compositor cedeu aos apelos do fã-clube e recriou Smile, num álbum que mesclava elementos das canções originais com vocais e instrumentação captados para a ocasião. Muito bem recebido pela crítica, o trabalho mostrou que havia um elo entre as ideias daquela que seria a obra mais ambiciosa dos Beach Boys. É essa a ordem de canções — começando com Our prayer e terminando com o hit Good vibrations — que reaparece em The Smile sessions, eleito o melhor relançamento do ano pela revista inglesa Uncut, uma das mais respeitadas do ramo.
O diferencial é que, desta vez, as fitas originais sofreram poucos retoques: as vozes do disco são de Wilson, Carl, Dennis, Mike e Al — o quinteto de “surf music” que se transformou, em meados dos anos 1960, num dos grupos mais inventivos do pop americano. É essa ambição por vezes delirante que transparece na estrutura do álbum, um retrato ainda cristalino de uma época em que ídolos do rock competiam entre si para surpreender o público, ampliar o alcance artístico da música popular e revolucionar técnicas de gravação. Na cabeça de Wilson, um rapaz gorducho de 25 anos, Smile tinha um alvo prático: superar as estripulias dos Beatles, que entravam na fase mais experimental da carreira.
Revoluções
Antes disso, no entanto, o roqueiro já sonhava alto. No início de 1966, com Pet sounds (1966), passou a escrever álbuns com o porte e a coesão de obras sinfônicas — algo muito diferente, mais complexo e melancólico, das compilações de sucessos que eram comuns entre a década de 1950 e a de 1960. Rubber soul (1965), dos Beatles, era o exemplo a ser mirado. Paul McCartney, por sua vez, admitiu que se inspirou nos arroubos de Wilson para escrever Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band (1967). Nesse contexto de grandes aventuras, o conceito de Smile não parecia extravagante: uma jornada pop aos mitos da América. “Na minha cabeça, era como se as coisas estivessem se transformando rapidamente, a cada semana”, contou o cantor. Nas rádios, Dylan avisava: os tempos estavam mudando.
Além de se impressionar com cada sucesso dos Beatles, Wilson estava encantado pelas composições de Van Dyke Parks, um letrista capaz de criar imagens que combinavam episódios da história dos Estados Unidos com um tom sentimental, amoroso. A amizade, iniciada em Good vibrations, engatilhou a criação de Smile — programado para ficar pronto em dezembro de 1966. A gravadora, Capitol Records, deu um número de catálogo para o produto (T-2580), que teria 12 canções, e imprimiu 400 mil encartes. Mas nem Wilson, nem Parks, nem os outros beach boys souberam como concluir uma ideia tão exuberante. “A resistência à minha visão, a dificuldade de competir com os Beatles, as pressões da minha gravadora… Tudo me perturbava, então parei”, explicou Wilson.
A ansiedade, somada aos efeitos das drogas que o cantor usava, transformou as gravações de Smile em um playground para todo tipo de paranoia e loucura. Afundar um piano numa piscina de areia e sugerir que os músicos usassem capacete de bombeiro fazia parte do jogo. Havia, porém, casos em que a brincadeira se tornava preocupante. Quando registrava a faixa Fire, Wilson se convenceu de que a música havia provocado um incêndio em Los Angeles — e que, por isso, a melodia estaria amaldiçoada. “Decidimos jogar tudo fora. Não gostamos de onde havíamos chegado. Era muito avançado para a época. E estávamos muito loucos”, admitiu, à revista Uncut. As fitas foram guardadas numa estante. E os Beach Boys lançaram, em setembro de 1967, o rescaldo da piração: Smiley smile.
“Meu coração criativo estava quebrado”, contou Wilson, que sairia do centro da banda no ocaso de Smile. Nas décadas seguintes, o disco faria uma sombra pesada sobre a trajetória do compositor — um trauma a ser resolvido. Houve tentativas de lançar as gravações no fim dos anos 1980 e no início dos anos 1990, quando 40 minutos das sessões da Western Studio, no endereço 6000 da Sunset St., apareceram no “box set” Good vibrations. Os fãs, entretanto, seguiam comprando a versão pirata, com dezenas de faixas remendadas e descartadas.
Os tempos mudaram de novo e, hoje, Smile influencia toda uma geração de bandas independentes, estimuladas pelo senso de descoberta do disco. “Acredito que o público esteja finalmente pronto para ele”, afirmou. Parece que sim: este velho álbum soa mais jovial que a maioria dos lançamentos de 2011.
Bandas que se inspiram na psicodelia de Smile
Wilco
» O sexteto de Chicago, liderado por Jeff Tweedy, gravou um disco inteiro com referências a Brian Wilson: Summerteeth, de 1999. A ambição de experimentar com sonoridades pop está sempre presente na trajetória da banda. Ouça em www.myspace.com/wilco.
Animal Collective
» Uma das bandas experimentais mais elogiadas dos Estados Unidos também evoca lembranças de infância e cria um contraste entre a doçura dos vocais e as ousadias de estúdio. Um dos integrantes, Panda Bear, é fã de Wilson. Ouça em www.myspace.com/animalcollective.
Fleet Foxes
» A banda de Washington poderia ter sido criada em meados de 1965: à matriz folk, eles adicionam camadas sonoras que alegrariam Brian Wilson. As letras, que cingem uma América mitológica, tem um quê de Van Dyke Parks. Ouça em www.myspace.com/thefleetfoxes.
The Shins
» Um dos grupos de rock independente mais bem-sucedidos do século 21 tem em Brian Wilson um dos maiores heróis. Discos como Oh, inverted world (2001) e Chutes too narrow (2003) equilibram tristeza e graciosidade, na tradição de Pet sounds. Ouça em www.myspace.com/theshins.