Os olhares demorados e fixos de seus personagens, admite Flávio Tavares, talvez traiam um vício de linguagem, de ;caligrafia;. Os modelos não posam à frente das suas mãos estáticos, segurando a respiração ; salvo em duas ou três raras exceções, ele lembra ;, mas saem de um espaço imaginário comum. Por isso, quem sabe, a maioria dos homens e mulheres tingidos por ele guarda semelhanças quase genéticas. No livro que será lançado hoje em Brasília, intitulado Flávio Tavares (Gráfica Santa Marta/Zarinha Centro de Cultura), na Livraria Cultura do Shopping CasaPark, a obra do artista é apresentada em reproduções de imagens de composições diversas e textos, assinados por especialistas, que tentam decifrar o estilo e a harmonia das criações do pessoense. Ou, simplesmente, pares de olhos tão enigmáticos.
Desenhista e pintor que nunca quis deixar João Pessoa, mesmo convivendo com o carinho de galerias de São Paulo, do Rio de Janeiro e de endereços estrangeiros (Alemanha, Equador, França, Israel e outros), Tavares vê-se morando eternamente na terra em que nasceu, em 1950, e que, há mais ou menos 50 anos ; isso mesmo, desde os 11, idade da primeira exposição ;, o vê desembainhando bicos de pena e pincéis na direção de folhas de papel, telas, suportes de azulejo e madeira. E traçando olhares que se irmanam, como a cadência de palavras que une pessoas de sotaque parecido. ;Quando fiz 17 anos, participei de um salão de arte moderna no Rio. Muita gente achava que eu devia morar lá. Passei um ano. Mas nunca consegui ficar longe daqui. Não é que tenha criado espírito de resistência a outros lugares. Apenas me sinto melhor aqui.;
Reinvenção
A estreia, com 11 anos, no setor de artes plásticas da Universidade Federal da Paraíba, ele reconhece, exibia um deslumbramento de iniciante. Seus trabalhos eram preenchidos de pescadores, vendedores de fruta, e os traços remetiam a nomes como Di Cavalcanti. ;Era uma criança que queria caminhar através dos passos dos mestres;, define, mas sem depreciar os tempos de menino. Até porque sua sensibilidade ainda está ligada à terra, sua gente, suas cores,suas texturas e seus sombreados.
Tavares amadureceu em contato com o repertório de outros gênios (Paul Gauguin, Diego Rivera antes mesmo de conhecer Frida Kahlo, Francisco Brennand), e o ensinamento de seus professores, entre eles, seu pai, Arnaldo Tavares, um médico habilidoso no desenho. ;São todas influências benéficas. Elas semeiam um mundo ao qual você pertence. O traço e a caligrafia se mantêm muito arredondados. Eu tinha uma pintura pesada, influência de Brennand e outros da escola pernambucana, que sempre foi a mais emblemática para nós. Tive descidas e subidas. O contorno sai e volta. Tive uma coisa mais alegórica e barroca, uma tendência à carnavalização. Às vezes, mudo muito, quando estou fazendo charge ou caricatura;, pontua, lá e cá, suas rotas pictóricas.
Os ;figurantes;, como Tavares chama os outros sujeitos da história protagonizada por ele mesmo, também pulam da tela do cinema (Pedro Almodóvar, Federico Fellini), das páginas dos livros (Augusto dos Anjos, Gabriel García Márquez, Jorge Amado, José Lins do Rego) e dos acordes musicais (Sivuca, Zé Ramalho). ;Não deixo margem para você pensar que o mundo é totalmente real;, desafia. ;A fábula se confunde com a história. Tem sempre um princípio do sonho, sementes de outras culturas que habitam a gente;, continua.
Há algo de universal que guia as linhas e tonalidades de Tavares, mas a brisa local toma conta do primeiro plano. Ele dá o exemplo do óleo sobre tela No reinado do sol (2008; 900 x 300cm), peça pertencente ao acervo da Estação Cabo Branco, complexo artístico e científico projetado por Oscar Niemeyer. ;O quadro reúne uma alegoria da história de como a Paraíba foi fundada, até os poetas atuais, e passando por Ariano Suassuna, no comando de uma nau;, analisa. Num mundo onde fronteiras e limites parecem conceitos medievais, o paraibano insiste em explorar os mesmos terrenos há meio século, alguns pisados por seus pés, outros sentidos com a alma. Neles todos, porém, só encontra novidade.
FLÁVIO TAVARES
Coletânea de obras de Flávio Tavares e textos sobre o artista paraibano. Edição bilíngue (inglês e português). Gráfica Santa Marta/Zarinha centro de Cultura, 234 páginas. R$ 100. O lançamento é hoje, às 18h, na Livraria Cultura do Shopping CasaPark (SGCV Sul, Lt. 22). Informações: 3410-4033.