Jornal Correio Braziliense

Diversão e Arte

Novo disco da inglesa Kate Bush é um dos projetos mais sutis da carreira

Não é sempre que o universo de Kate Bush está aberto para visitação. Mas, quando a inglesa resolve anunciar um novo disco (e não é com frequência que esse tipo de milagre acontece), os fãs sabem que os desafios musicais serão insólitos. Os seguidores da cantora se acostumaram a investigar cada verso das canções, em busca de segredos e pistas. Tamanho esforço não existe à toa, aliás. Desde o fim dos anos 1970, Kate concebe álbuns que podem ser ;lidos; como poemas, filmes ou instalações de arte contemporânea. São obras cheias de enigmas. Em alguns casos, mistérios de difícil solução.

Em 2011, no entanto, até essa espécie rara de admiradores (que parece estar preparada para toda extravagância pop) deve ter se surpreendido com as novidades da musa. Isso porque, depois de um hiato de seis anos, ela gravou não somente um, mas dois discos. Ainda mais desconcertante que isso: os lançamentos estão entre os mais concisos e serenos de uma carreira que inspira mulheres geniosas, e elogiadas, como Bj;rk, St. Vincent e Joanna Newsom.

O que segue inalterado, reviravoltas à parte, é a potência das ambições: Director;s cut, de maio, reconstruiu músicas dos discos The sensual world (1989) e The red shows (1993). E a faixa mais curta de 50 words for snow, um álbum-nevasca com inéditas, tem seis minutos e meio de duração.

Se Director;s cut chega como uma experiência inclassificável, que será digerida apenas pelos admiradores mais famintos, 50 words for snow convida o público para uma paisagem menos hostil. O piano suave de Kate, acompanhado de efeitos eletrônicos discretos, garante ao conjunto uma fluência jazzística que deve ampliar a plateia da cantora de 53 anos. ;Foi um disco fácil de ser feito, o processo foi tranquilo, divertido;, comentou a autora de hits oitentistas como Wuthering heights, em entrevista ao site The Quietus. Percebe-se.

Gravado imediatamente após Director;s cut, o disco abandona as narrativas domésticas, autobiográficas, de Aerial (2005). Aquele era um álbum duplo de 80 minutos de duração. O novo, com apenas sete faixas (a maior delas, Misty, tem 13 minutos), vira a página para contar histórias fantasiosas em cenários frios, quase sempre brancos. Na abertura, Snowflakes, o narrador é um floco de neve. Em Snowed in at Wheeler Street, o script acompanha duas almas apaixonadas em diferentes períodos de tempo. Já em Misty, a relação entre uma mulher e um boneco congelado é encenada com a sensualidade de um poema erótico.

Cenário mágico
;A neve é uma substância mágica, evocativa. Por que não escrever um disco conectado a uma estação do ano?;, comentou Kate à revista Mojo. Para cumprir o objetivo, ela acelerou a pós-produção do álbum, que chega às lojas europeias a tempo do inverno. Nos países do Hemisfério Sul, recomenda-se que ele seja degustado imediatamente, antes do mormaço de janeiro. A delicadeza do registro sugere audições repetidas, de preferência em ambientes silenciosos. Na primeira música, por exemplo, Kate convida o filho de 12 anos, Bertie, para interpretar o floco de neve ; detalhe que pode passar despercebido ao ;espectador; mais apressado. E, em Snowed in at Wheeler Street, é Elton John quem faz o vozeirão de um dos espíritos condenados pelo amor platônico.


Outro famoso que faz uma ;ponta; é o ator britânico Stephen Fry. Ele está na faixa que dá título ao álbum ; uma das mais despretensiosas que Kate gravou. Na música, Fry fecha o sorriso para listar 50 palavras que serviriam de sinônimo para neve. Trata-se, é claro, de uma brincadeira, inspirada no mito de que, em algumas comunidades de esquimós, os moradores usariam dezenas de termos para se referir ao fenômeno climático. O refrão parece rir de si mesmo. E sim, acredite: há lugar para anedotas num disco de Kate Bush.

CRíTICA *** ; Recital em branco e azul

Kate Bush passou a maior parte dos anos 1990 em silêncio. Na primeira década do século 21, gravou um disco de confissões domésticas, como se tomasse distância de uma paisagem pop que lhe soava alienígena. Em 50 words for snow, a rainha do art-rock finalmente toma uma posição dentro de uma cena feminina em que a estranheza se tornou um valor a ser admirado e imitado. No reino das Bj;rks e Joannas, a resposta da veterana parece até conservadora: em vez de gritos, sussurros; no lugar das invenções delirantes, discrição e suavidade. Mas só parece.


Se a aparência é de um recital de piano à meia-luz, o coração do disco bate num compasso jazzístico, às vezes hipnótico, como num choque entre os azuis de Miles Davis (Kind of blue) e de Joni Mitchell (o disco Blue). Enquanto as discípulas se encantam pelo caos, Kate sai à procura da sutileza, criando canções que sugerem espaços vazios e personagens densos.


E, nesse esforço por concisão, ela vai se afastando do pop, do rock, ignorando a necessidade de produzir canções para rádios (há apenas uma, a ótima Wild man). Dona do próprio mundo (e, agora, do próprio selo), dedica-se a caçar novos mistérios para entortar um estilo que se tornou familiar. Se não criou o melhor dos dramas bergmanianos, cumpriu o objetivo de nos surpreender mais uma vez.

50 WORDS FOR SNOW

Décimo disco de Kate Bush. Sete faixas, com produção da própria cantora. Lançamento EMI/ Fish People. Preço médio: R$ 30.