Jornal Correio Braziliense

Diversão e Arte

Novo livro de Umberto Eco embaralha ficção e realidade em suspense

Quando a literatura se lança a discutir datas, documentos e fatos com a história oficial, o resultado dificilmente passa despercebido pelos olhos dos leitores. O debate geralmente desperta conclusões imprecisas, confusas ; basta lembrar o polêmico mas frágil O código Da Vinci, de Dan Brown ;, ou nem mesmo chega a tanto: há casos em que realidade e invenção são assuntos complementares do mesmo tema. Eleger um lado é silenciar o diálogo. No último título do semiólogo (especialista em signos linguísticos), escritor e filósofo italiano Umberto Eco, O cemitério de Praga (Record), há apenas um sujeito saído diretamente da cabeça do autor: o capitão reformado Simonini, um homem ;gordo o bastante para ser considerado aquilo que chamam um belo homem;, que prefere o vapor da culinária ao calor das mulheres e, acima de qualquer coisa, um falsário atolado de preconceitos (a rigor, contra judeus e religiosos em geral). Os outros habitantes do livro, extraídos do século 19, são reais ; entre eles, o psicanalista Sigmund Freud.


;A inteligência é banal, a estupidez é fascinante;, polemizou Eco, na última edição da Feira do Livro de Frankfurt, em outubro, onde esteve para divulgar a tradução alemã do lançamento. O autor de O nome da rosa, suspense policial de estreia ambientado na Idade Média e best-seller nos anos 1980, parte de um documento de origem discutível, O protocolo dos sábios de Sião, para a construção do diário perturbador de Simonini. O fraudulento registro, que descreve um suposto plano diabólico dos judeus para dominar o mundo, serviu como álibi do antissemitismo e até teria inspirado o nazismo de Adolf Hitler. Mas o texto é uma mentira deslavada.

Exame político
Quem disse que Eco, um intelectual tão acostumado a forjar a ficção por meio da história e habitualmente rescrevê-la em seus próprios termos, acredita na verdade? ;Interessam-me os problemas de linguagem, os instrumentos da comunicação humana;, disse ainda o ensaísta, que chegou a ser cotado para o Prêmio Nobel de Literatura deste ano, dado ao sueco Tomas Transtr;mer. ;A nostalgia de um mundo mais perfeito sempre foi o motor da humanidade, e a literatura sempre esteve na vanguarda dessa bela empresa. Uma sociedade sem literatura seria mais estática e conformista;, completou. Se mentir é inevitavelmente humano, então ele é um dos grandes e bons mentirosos do século 20. A serviço da ficção, é claro. Mas Simonini não é da mesma estirpe.


Falsificador apátrida, portando barba e bigodes postiços, o protagonista não ;podia suportar ser italiano;, se fez francês, mas considera seus novos compatriotas ;orgulhosos além de todos os limites;. Aos alemães, também não reserva elogios. Nem os músicos eruditos são perdoados: ;Pelo pouco que escutei, as composições do seu Bach são totalmente desprovidas de harmonia, frias como uma noite de inverno, e as sinfonias do tal de Beethoven são uma orgia de estardalhaço;. Cresceu odiando judeus, maçons, padres. Mas, para o seu dissabor, ele próprio é um homem duplo, sem identidade.


Na casa em que vive, próxima da place Maubert, em Paris, passa noites agitadas. Sente-se anfitrião de um estranho, o abade Dalla Piccola. O defensor da fé guarda seus escritos e vestes em cômodos particulares e também angustia-se com pensamentos estranhos ; ;descobri um corredor (nunca o vi?) cheio de roupas, perucas, cremes e maquilagens daquelas que os atores usam;, certa vez anotou o religioso. Eram de Simonini.


Na teia de pecados, traições e desaparecimentos misteriosos, o anti-herói de Eco pratica coisas que realmente ocorreram e esbarra em habitantes que de fato nasceram e morreram. Como Freud ; ou ;Fr;ide (acho que se escreve assim);, num dos vários momentos irônicos e satíricos do livro. O psicanalista, então um médico de 30 anos, por volta de 1885 ou 1886, enfrentava a timidez com ;um pouco de cocaína para soltar a língua;.


Entre elementos iconográficos e um apêndice cronológico do diário não linear de Simonini, o escritor menciona um catálogo de eventos que se misturam à trajetória do personagem. Afinal, o século 19 acolheu um intenso movimento político e econômico na Europa, prelúdio dos anos atribulados do século seguinte. As rivalidades nacionais fervilhavam, enquanto marxismo e anarquismo sinalizavam uma virada drástica na humanidade. Eco, com um Simonini que é sintese de golpes e revoluções, inscreve-se a si mesmo como autor de uma história que é, a um só tempo, universal e particular. E que também não deixa de ser uma reflexão refinada sobre a política do presente.

; Trechos

;Há pouco tocaram a campainha lá embaixo. Temi que fosse alguém tão estulto a ponto de querer comprar alguma coisa, mas o sujeito logo me disse ter sido mandado por Tissot ; afinal, por que escolhi essa senha? Queria um testamento hológrafo, firmado por um cedo Bonnefoy a favor de um certo Guillot (certamente era ele). Trazia o papel de carta que esse Bonnefoy usa ou usava e um exemplo da sua caligrafia. Introduzi Guillot ao escritório, escolhi uma pena e tinta adequadas e, sem querer fazer um rascunho, construí o documento. Perfeito. Como se conhecesse as tarifas, Guillot me estendeu um pagamento proporcional à herança.
Então, é esse o meu ofício? É bonito construir do nada um ato notarial, forjar uma carta que parece verdadeira, elaborar uma confissão comprometedora, criar um documento que levará alguém à perdição. O poder da arte; Digno de me premiar com uma visita ao Café Anglais.;

;Os comunistas difundiram a ideia de que a religião é o ópio dos povos. É verdade, porque serve para frear as tentações dos súditos, e se não existisse a religião haveria o dobro de pessoas sobre as barricadas, ao passo que nos dias da Comuna não eram suficientes e foi possível dispersá-las sem muito trabalho. Mas, depois que escutei aquele médico austríaco falar das vantagens da droga colombiana (referência a Freud), eu diria que a religião é também a cocaína dos povos, porque a religião impediu e impele às guerras, aos massacres dos infiéis, e isso vale para cristãos, muçulmanos e outros idólatras, e, se os negros da África se limitavam a se massacrar entre si, os missionários os converteram e os fizeram tornar-se tropa colonial, adequadíssima a morrer na primeira linha e a estuprar as mulheres brancas quando entram em uma cidade. Os homens nunca fazem o mal tão completa e entusiasticamente como quando o fazem por convicção religiosa.;