Diversão e Arte

Livro traça um impressionante panorama da história da sétima arte

Ricardo Daehn
postado em 20/11/2011 08:05

A doce vida (1960), de Frederico Fellini: %u201CImpelida pelos excessos que narrava, a imaginação visual de Fellini entrou em marcha acelerada e sua imageria barroca desembestou de vez%u201D

O receio vem pela carga pretensiosa do título, Tudo sobre cinema. No entanto a má vontade inicial vai logo pelos ares tão logo o leitor se inteira do potencial de esclarecimentos, da capacidade de entretenimento com histórias (ligadas a filmes ou a astros) e da proposta de contextualizar inúmeros movimentos cinematográficos do editor-geral Philip Kemp e de seus 25 colaboradores. Professor em universidades inglesas, Kemp faz valer o título de historiador do cinema. Desde a análise do impacto das obras examinadas (e ricamente ilustradas, com mais de mil fotografias) até um teor crítico, ocasionalmente ácido, o deleite é absoluto para qualquer cinéfilo.


Percepções estéticas, números de mercado e pertinência histórica dos filmes (em face das circunstâncias de produção) despontam como atrativos de Tudo sobre cinema, um parrudo lançamento da editora Sextante. O ;processo doloroso; das escolhas, que seria capaz de gerar ;lacunas; na publicação, soa falsa modéstia. Até a constatação da excelência tecnológica que reveste Avatar (2009), passando pela análise das ;raízes da psique norte-americana; pós 11 de setembro (a cargo de Paul Thomas Anderson e Martin Scorsese, entre outros), Tudo sobre cinema abraça, a princípio, a era dos primórdios da arte tonada ;refém da tecnologia;. ;Pode-se dizer que, até 1914, os principais desenvolvimentos técnicos ; à exceção do som, da cor e do 3D ; já haviam sido inventados;, esclarece.


Números impressionantes, como o faturamento de US$ 1 bilhão para Toy Story 3 (2010) e o da feitura de 500 filmes japoneses, por ano, em fins dos anos de 1950, se juntam a dados polpudos como a frequência anual de um bilhão de espectadores britânicos, em 1956, e à curiosidade de que, por oito meses, parisienses sustentaram a exibição de Um cão andaluz (1929), de Luis Buñuel e Salvador Dalí. Celebrado pelos surrealistas, o cinema fantástico de Georges Méli;s (;mágico por profissão;) é dimensionado por Viagem à lua (1902), entre 500 filmes do diretor, como matriz para fitas como 2001: Uma odisseia no espaço (1968) e Guerra nas estrelas (1977).

Epopeia nas telonas
Tachado como ;épico cósmico;, o cinema fantástico de Méli;s antecede o destrinçar de epopeias na telona, cujas origens estariam no passado clássico da Itália, país que depurou filmes ;visualmente extravagantes e de dimensões operísticas;, como Cabiria (1914), de Giovanni Pastrone, formado por ;mais de 1,2 mil cenas; capazes de influenciar até Intolerância (de D.W. Griffith).


A pesquisa dos épicos aponta Napoleão (1927), de Abel Gance, como suprassumo do apuro estético para o cinema mudo.
Alinhados às produções latino-americanas ; ;que não podiam se dar ao luxo de não serem políticas; ;, os longas brasileiros, por sinal, são apontados como os ;mais importantes; da região. Enterrada a declaração de Héctor Babenco, em 1991, de que o ;cinema brasileiro estava morto;, Cidade de Deus (2002), ;um convicente coro de anjos da cara suja;, se projeta, no livro, como o filme latino-americano referencial dos últimos 20 anos.


A ;energia resistente; atribuída ao neorrealismo italiano está detectada, num amálgama com a nouvelle vague francesa, nas fitas de Glauber Rocha, entre as quais A idade da Terra, elogiado por Michelangelo Antonioni pela ;lição de como se deve fazer cinema moderno;. O texto do jornalista Demetrios Matheou dedicado à América Latina prediz um enfraquecimento do poderio hollywoodiano, a partir do fortalecimento do consumo interno das produções locais.

O lugar da produção hollywoodiana

Hegemônico, desde os anos 1920, o cinema hollywoodiano não monopoliza as atenções em Tudo sobre cinema. Além de pontuar o efeito nefasto para a indústria ; a partir da multiplicação dos 3,8 mil televisores (em lares americanos de 1940) que, em 20 anos, chegaram a nove entre dez casas ;, o livro destaca que a excelência universal do cinema mudo foi motor de críticas ao ;retrocesso; demarcado pela incorporação do som.


O livro também registra decadências do porte das ;exibições desastrosas; de Monstros (1932), içado à condição de cult (na era da contracultura), e quedas nas bilheterias francesas do produto nacional (com apenas 28% da arrecadação, em 1994). Se denuncia a existência de ;medíocres filmes multiculturais; de Cédric Klapisch (Albergue espanhol e Bonecas russas), o livro oferta o contraponto, ao exaltar a ;estética de autor; dos forasteiros (na França) Rachid Bouchareb e Michael Haneke (Caché), além do genuíno Jacques Audiard (O profeta).


Ainda que reserve ao intrigado François Truffaut, indiferente ao cinema francês ;de qualidade; dos anos 1950, o papel deflagrador da ;política dos autores; (que particularizou o quê pessoal de cada diretor), a extensa publicação esclarece um tema de pouco consenso. ;Acossado (1959, de Jean-Luc Godard) era realmente inovador no que diz respeito às técnicas, ao passo que Os incompreendidos (1959, de Truffaut) é, de certo modo, uma redescoberta francesa do neorrealismo italiano da década de 1940;, registra o provocativo capítulo Nouvelle Vague. A carga de inconformismo, na leitura, se desdobra em análises da nouvelle vague tcheca, do fatalista cinema noir (em dissonância com o otimismo reinante nas telas) e da New Wave britânica.

Fotogramas irados
Outro símbolo diabólico, mas na instância da segregação, Hitler povoa a descrição de fatos racistas vinculados à cena cinematográfica. Na esteira da mensagem torta de O nascimento de uma nação (1915), que apregoou que ;a vinda forçada dos africanos para os Estados Unidos plantou a semente da discórdia; (entre outros absurdos favoráveis à Ku Klux Klan), o führer promoveu a debandada de talentos como G.W. Pabst, Fritz Lang e Max Ophüls.


Atualizado, o livro celebra inclusive filmografias nórdicas, com detalhes do renascimento do cinema dinamarquês, por Lar von Trier e Thomas Vinterberg, no pós-Dogma 95 (que amputou a ;visão cosmética do cinema moderno;). Da ótica de O gabinete do doutor Caligari (1920) como modelo para o cinema de terror, passando por temas tão amplos quanto o dos componentes familiares na filmografia do japonês Yasujiro Ozu e o da perpetuação do western espaguete (remodelado do faroeste americano e dos filme de samurai) nas obras de Quentin Tarantino, Tudo sobre cinema se confirma como fonte completa para o prazer de aficionados pela sétima arte.

Tags

Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação