A cozinha é, sem dúvida, um ambiente democrático. Basta ter vontade de se juntar às parafernálias do lugar e deixar a criatividade comandar. Prova disso é o projeto Chefs Especiais ; Down Cooking. Voltado para o lazer gastronômico de portadores da síndrome de Down, sem pretensão clínica ou pedagógica, a iniciativa é realizada em São Paulo há cinco anos. Todos os meses, o casal Simone e Márcio Berti reúne uma turma com 20 participantes que, invariavelmente, saem de lá com os rostos lambuzados de alegria e muita comida gostosa.
O projeto funciona em esquema de rodízio, para que os mais de 200 inscritos tenham a oportunidade de participar. ;Não há limite de idade nem distinção de sexo ou classe social. O aluno só não é convidado caso tenha alguma restrição alimentar de ingredientes que farão parte da receita daquela aula;, explica Simone. De acordo com ela, todo o material ; ingredientes, uniformes, bebidas e a cozinha utilizada ; é doado. Tudo pronto, um chef é convidado para, naquele dia, ensinar aos alunos uma receita passo a passo. Já passaram por lá cozinheiros como Olivier Anquier, Clô Dimet e Henrique Fogaça. ;Cada um doa um pouquinho, e nós fazemos um montão;, diz a idealizadora da brincadeira.
Na hora, os participantes são divididos em grupos de três e recebem orientação de auxiliares, que também são chefs. Mas nada de ficar só olhando. Os alunos são estimulados a tomar a frente do processo. ;Quem faz tudo são os downs. Eles são as estrelas do dia, são os chefs especiais. Chef e auxiliares são coadjuvantes;, determina Simone.
Ela conta que os alunos colocam a mão na massa sem dó. A ideia é que as receitas possibilitem o manuseio dos ingredientes para proporcionar maior interação com os alimentos. ;Optamos muito por massas, tortas, doces decorados, enfim, tudo que eles realmente possam vencer limites, até mesmo ao quebrar um ovo. Cada vitória como essa é cheia de muitos aplausos, tanto para o aluno como para o ovo;, brinca Simone. E, depois do prato feito, é hora de provar o resultado do trabalho, um dos momentos mais alegres do dia.
Gostosuras
Rosa Miranda, mãe de Beattriz Miranda, 23 anos, conta que a filha sempre gostou de ajudar os pais na cozinha e que o interesse só aumentou depois da participação do projeto. A jovem ficou mais extrovertida, interessada e até ansiosa para participar de outras aulas. ;Quando chega o fim do mês, ela já começa a perguntar se não vai ter o curso. Ela fez muitos amigos;, comemora. Beattriz busca também aumentar seu cardápio e sempre ajuda a fazer lasanha, seu prato preferido, em casa. ;Às vezes, meu pai pede para eu fazer pão de queijo, que é uma delícia. Sei fazer muitas coisas gostosas;, garante.
Simone explica que uma das preocupações do projeto é ensinar receitas que possam ser facilmente repetidas pelos alunos em casa. Entre os pratos já ensinados nesses cinco anos de projeto, estão panquecas dos mais variados tipos, massa de macarrão caseiro, laranjas e tomates recheados, petit gateau, pavê de sonho de valsa com flores comestíveis e até uma festa temática dos anos 1970, com petiscos retrôs e sanduíches. ;São em média três receitas por aula. E para todas damos sugestões de ingredientes que podem substituir os originais;, diz.
As aulas têm duração de duas horas, nas quais reinam o entusiasmo e a descontração. ;É uma valorização da pessoa especial e de sua família. Mostramos que as pessoas especiais, quando estimuladas e respeitadas, podem se tornar independentes;, observa a idealizadora, que, ao contrário do que alguns podem pensar, não tem nenhum filho com síndrome de Down. Ela conta que a ideia do casal surgiu da vontade de contribuir para uma causa social. ;Acreditamos e comprovamos que a motivação no down, como em qualquer outra pessoa, pode transformar um grãozinho de areia num oásis. É essa nossa expectativa.;
Autoestima
Priscila Almeida de Melo, 29 anos, gostou tanto das aulas das quais já participou que agora acalenta o sonho de cozinhar na televisão, mais especificamente no programa de Ana Maria Braga. ;Quero ir lá e fazer o estrogonofe de frango;, planeja. Sua mãe, Célia, diz que ela era muito acanhada antes de integrar o projeto e que a mudança de postura foi nítida. ;Eu gosto de fazer amigos e de cozinhar também;, conta a jovem.
Na opinião da psicóloga Marília Pereira, apesar de o projeto não ter um objetivo clínico, funciona como uma forma terapêutica de inserir o jovem portador de síndrome de Down em atividades extracurriculares e promover a interação social, o senso de produção útil e o trabalho em equipe. Para a especialista, a satisfação de degustar uma culinária refinada preparada por eles mesmos e compartilhar com os professores e colegas de sua criação ajuda a aumentar a autoestima dos participantes. ;No programa que presenciei, pude ver a satisfação e o prazer deles em todo o processo, desde a compra dos produtos com o chef (na ocasião, Olivier Anquier) até a hora de provar o prato e servir às outras pessoas;, diz.
Para Marília, os cuidados necessários nesse tipo de iniciativa são basicamente o de não criar nos jovens expectativas que eles não consigam atingir e realizar atividades em que eles desenvolvam habilidades que possam, mais tarde, pôr em prática. ;Se não vão realizar, isso precisa ficar muito claro no projeto;, aconselha.
Próximos passos
O sucesso do programa é tanto que vira e mexe os organizadores recebem pedidos para sua realização em outras cidades e até países. Contudo, Simone observa que, quando começa a explicar quão trabalhoso é o processo, muitos se desinteressam. ;Não é só o momento da aula. O trabalho começa assim que o outro termina, há toda uma preparação;, diz. De acordo com ela, a iniciativa exige comprometimento com a continuidade das aulas, pois a expectativa dos alunos por mais uma aula costuma ser imensa. ;Eles esperam ansiosos por novo convite.;
Atualmente, a maior dificuldade é não conseguir atender a todos os alunos. Com o rodízio, a demora para que a pessoa seja convidada novamente pode chegar a três meses. Ela acredita que o evento é a única opção de lazer de alguns e a ampliação do projeto poderia ser benéfica para muitas outras pessoas.
Um dos planos de Simone e Márcio é, a partir do ano que vem, ajudar na profissionalização de alguns alunos e inseri-los no mercado de trabalho e também ensinar tarefas domésticas e de autonomia para que eles tenham atividades relevantes dentro de casa. Outra preocupação será a de capacitar as mães como uma forma de gerarem renda para a família dentro do lar e realizar uma cozinha itinerante que visitaria escolas voltadas para pessoas especiais. ;Para que seja concretizado esse projeto, necessitamos de empresas apoiadoras e um espaço cedido de fácil acesso;, aponta.