Pianista, produtor, arranjador, compositor, César Camargo Mariano revela mais uma habilidade em Solo, livro de memórias que acaba de lançar: a de contador de histórias. Em quase 500 páginas, ele rememora trechos de uma trajetória que começa em São Paulo, numa madrugada chuvosa de setembro de 1943, quando dona Beth deu à luz o primeiro filho, e para no ponto em que esse menino se torna homem maduro, músico prestigiado, radicado há quase 20 anos em Nova York, mas com fortes laços com o Brasil, onde moram seus filhos ; todos, como ele, bem encaminhados no meio musical.
Além da boa memória para relembrar detalhes de acontecimentos passados em diferentes épocas de sua vida, uma característica que salta aos olhos na narrativa de César Camargo é a discrição. Com a autonomia de quem é dono da história, ele dá relevo ao que considera mais importante e minimiza passagens que poderiam despertar o interesse de um leitor acostumado a associar as autobiografias de famosos a revelações bombásticas.
Elis Regina, por exemplo, segunda mulher do músico ; a primeira foi a também cantora Marisa Gata Mansa ;, ocupa generoso espaço no livro. Mas Mariano prefere se deter no relato de experiências dos dois em palcos e estúdios de gravação a esmiuçar a convivência de sete anos como marido e mulher. ;Todos os trabalhos que fizemos juntos eram pretensiosos no sentido da perfeição, dos cuidados, do profissionalismo e dos objetivos. Mas alguns foram realizados sem maiores intenções. Somente porque queríamos fazer, com o objetivo de realizar um sonho;, conta o músico.
Pouco depois da morte de Elis, César ; que então vivia no Rio ; viu-se obrigado a voltar a morar em São Paulo para cuidar dos dois filhos pequenos, Pedro e Maria Rita. Enquanto tentava organizar a vida de novo na capital paulista, encontrou Flávia, que o ajudaria a pôr ordem no caos e com quem se casaria. Mas, embora ele não perca uma oportunidade de ressaltar a importância da atual esposa em sua vida, o grande par de César Camargo Mariano nessa história toda não é uma mulher, e sim a música. Uma paixão antiga e visceral: ;Sempre que lembro ou penso em uma música, já ouço, internamente, o som da orquestração e tudo o mais. Desde criança sou assim;.
E isso não se deu por acaso. O pai do artista, Miro, era pianista clássico amador e costumava receber em casa amigos músicos. ;Era programa certo (os músicos) encerrarem suas apresentações e descerem de São Paulo a São Vicente, para a ;casa do Careca; ; apelido carinhoso que deram ao meu pai ;, onde os esperavam acolhida entusiasmada, boas conversas de música, oportunidade de tocar com colegas, cerveja gelada e os bolinhos de banana que minha mãe fazia;, lembra, referindo-se à época em que a família se mudou para o litoral paulista.
Nessa história de amor entre César Camargo Mariano e a música, aparecem, além de Elis Regina, coadjuvantes de peso. Johnny Alf, Tom Jobim, Wilson Simonal, Nana Caymmi, Leny Andrade, Hélio Delmiro, Lennie Dale, Myriam Muniz, Arnaldo Jabor, Manoel Carlos e Tony Bennett aparecem como personagens de histórias descritas com explícita paixão e que têm como cenários recorrentes os estúdios, palcos e casas noturnas onde houvesse um piano disponível. César não poupa detalhes ao descrever processos criativos de discos e shows, os caminhos que percorreu para chegar a este ou aquele resultado ou os contratempos em que o fazer artístico invariavelmente esbarra. E ainda ilustra essa narrativa com desenhos que ele mesmo fez. A propósito, mais uma habilidade revelada: a de desenhista.
Tudo pela arte
Um dos sonhos de César e Elis, realizado no palco, foi Falso brilhante. ;Um dia, Elis gritou lá da cozinha: ;Estou com vontade de fazer um espetáculo!’ E no que ela disse ;espetáculo; em vez de ;show;, eu soube imediatamente do que ela estava falando;, ele conta. O casal vendeu tudo para bancar o sonho e, para economizar, adotou hábitos como usar moto no dia a dia. É uma das raras cenas domésticas descritas no livro: ;Elis ia na garupa, João (Marcelo) sentava-se entre mim e ela, ficando bem protegido, e Pedro, como era bem pequeno, eu o colocava sentado no tanque de gasolina (;). Quando parávamos em um sinal, havia sempre alguém que nos chamava de loucos. Continuávamos nossas viagens rindo e comentando: ;Se eles soubessem;;;.
Coadjuvantes
Johnny Alf
; Alf foi levado à casa dos pais de César por um amigo comum, o músico Sabá. Após a visita, avisou que iria morar com eles. ;Durante os quase oito anos que morou na casa de meus pais, Johnny Alf ajudou a cuidar da gente. Chegava de manhã, vindo da boate, tomava café conosco e via se Beto e eu íamos direto para a escola. Em seguida, caminhando, levava minha irmã, Lena, que tinha uns 3 ou 4 anos, para a escolinha.;
Nana Caymmi
; Com Nana, César gravou em 1983 o belíssimo álbum Voz e suor, de voz e piano. ;O que rolou foi uma coisa maravilhosa entre mim e ela. Como o piano era eletrônico, posicionei o microfone dela o mais próximo possível de mim, e ela passou o tempo todo cantando olhando para mim, e vice-versa. Nós dois estávamos superemocionados com aquela integração que ia nascendo ali.;
Tonny Bennett
; Em 2002, Mariano gravou em Nova York um CD com o violonista Romero Lubambo. As gravações foram no estúdio de Bennett, que um dia apareceu por lá e falou de sua paixão por música brasileira. ;Sou muito apaixonado por um álbum que há anos escuto quase todos os dias, como a leitura de um livro sagrado. Não sei se vocês conhecem, pois tem mais de 30 anos. Chama-se Elis & Tom. Romero deu uma risadinha e falou: ;Mr. Bennett ; segurou o meu braço ;, foi esse moço aqui quem tocou, produziu e fez os arranjos desse álbum;.;
Tom Jobim
; César e Elis Regina foram a Los Angeles gravar com Jobim o álbum Elis & Tom, que se tornaria antológico. Mas não foi um trabalho fácil. O pianista conta que nos dias em que se dedicava a criar arranjos e orquestrações, recebia frequentes telefonemas de Tom, repleto de dúvidas e perguntas. ;Praticamente a cada quatro compassos de cada arranjo, ele ligava. Imaginei que estivesse de plantão na casa dele, com o telefone do lado da banheira.;
Wilson Simonal
; Com o grupo Som 3, César tocou com Simonal de 1965 a 1970. Inclusive no momento histórico em que Simonal foi ovacionado no Maracanãzinho, ao cantar Meu limão, meu limoeiro, quase impedindo a apresentação de Sérgio Mendes, atração principal da noite. ;Depois da quinta ou sexta vez que o público chamou, aos berros, por Simonal, alguém na coxia me disse que tínhamos de fazer alguma coisa, pois o Sérgio precisava tocar. Então, mais uma vez cheguei perto do piano e pedi ao Sérgio para não se levantar, mas ficar ao meu lado para tocarmos juntos Sá Marina.;