Famosa pelos joelhos que despertavam suspiros, pela voz doce e pelo impulso que deu à Bossa Nova, Nara Leão teve impacto maior do que se imagina na música brasileira. ;Ela foi muito marcante no momento político da ditadura. Se posicionou e correu riscos, até partir para o auto-exílio. Além disso, conseguia lançar muitos artistas novos, como Chico Buarque e Maria Bethânia, e resgatar os que estavam esquecidos, como Cartola e Zé Keti;, ressalta a atriz Fernanda Couto. Seu encantamento pela biografia da cantora foi tão intenso que ela resolveu levar a história aos palcos. Nara ; Musical brasileiro está em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil até 30 de outubro.
Entusiasta das melodias e letras do cancioneiro popular, Fernanda Couto decidiu guardar suas favoritas para elaborar um musical. Durante o processo de busca pela inspiração, começou a ler sobre a vida da cantora capixaba criada na efervescência cultural do Rio de Janeiro. Encantou-se e decidiu dividir suas descobertas com o publico. Ao remexer no repertório guardado, veio a surpresa: boa parte das músicas que havia selecionado era interpretada por Nara. A construção do espetáculo, dirigido por Márcio Araújo, durou três anos.
O resultado é um passeio por fatos marcantes do caminho profissional e pessoal trilhado por Nara, fruto de uma vasta pesquisa feita em biografias e declarações feitas à imprensa à época. ;Não queria entrar em uma dramaturgia tradicional e essa foi a forma que encontrei de falar de uma pessoa tão discreta;, destaca Fernanda. Outra escolha foi a metalinguagem. Todos que estão no palco ora interpretam personagens, ora fazem o papel de si mesmos.
Repertório
Tudo, claro, pontuado por muita música. Depois de muitos dilemas, a equipe fechou um repertório de 20 músicas, entre elas Diz que fui por aí, Insensatez, Opinião, A banda, Com açúcar, com afeto, João e Maria, Primavera, Traduzir-se, Manhã de carnaval, entre outros clássicos imortalizados pela voz suave de Nara. No palco, Fernanda conta com a companhia de Rodrigo Sanchez, William Guedes e Guilherme Terra. ;Precisava de três músicos que topassem estar em cena também como atores;, esclarece ela. Além de tocar, eles dão vida a homens importantes da trajetória de Nara, como Chico Buarque, Erasmo Carlos, Roberto Menescal e o cineasta Cacá Diegues (com quem a musa da bossa nova foi casada).
Apesar de se enquadrar na categoria musical, o projeto foge da grandiosidade dos musicais da Broadway. ;Brinco que é um antimusical, é banquinho e violão, já que Nara era a antiestrela. Ele é intimista, quase um musical de câmara;, revela. Tampouco sua interpretação beira a caricatura ou a imitação. Como seu biotipo lembra pouco o da cantora, a ideia é apropriar-se do jeito. A timidez e a suavidade estão presentes em cena.
Como não é musicista, a atriz precisou enfrentar o desafio de soltar a voz, de forma convincente, no tablado. Sua experiência com canto se resumia ao espetáculo Mambembe, dirigido por Gianni Ratto, em que participava de um número musical coletivo. Além de retomar as aulas de canto, contratou uma assessoria fonoaudiológica para ajudar na construção da personagem. O violão, companheiro constante da cantora, também exigiu esforço e dedicação. ;Foi muito difícil, mas aprendi as duas músicas que faço na peça: O sol nascerá e Luz negra. Por trás daquela simplicidade, a Nara tinha muita sofisticação musical;, conta.
; Prêmios
; A montagem foi indicada aos prêmios Shell e da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), além de ter ganho o prêmio da revista Contigo! de melhor musical nacional. Depois de duas temporadas em São Paulo e uma no Rio de Janeiro, começou a circular pelo país. Já passou pelo interior paulista, por Teresina (PI), e agora chega a Brasília. A produção negocia uma temporada comemorativa no começo do ano, para celebrar os 70 anos de Nara (ela faria aniversário em 19 de janeiro).
Nara ; Musical brasileiro
Até 30 de outubro, de quinta-feira a domingo, às 21h, no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB, SCES Trecho 2, Lote 22; 3108-7600). Ingressos: R$ 6 e R$ 3 (meia). Não recomendado para menores de 10 anos.
Subversão de palco e plateia
Acostumados a serem receptores da ação teatral, os espectadores do projeto Mitos do Teatro Brasileiro, que homenageou o diretor e dramaturgo Augusto Boal nesta terça-feira, viveram uma experiência diferente. Durante alguns instantes, foram deslocados para a posição de atores, ou ;espect-atores;, para usar expressão cunhada pelo próprio homenageado. Antes dos depoimentos da noite, feitos por Amir Haddad, Aderbal Freire Filho e pela viúva do teatrólogo, Cecília Boal, os comandantes da parte cênica da homenagem, os atores J. Abreu e Sílvia Paes, apresentaram um impasse, baseado no Teatro do Oprimido, criado por Boal. Diante do impasse, uma mulher que quer ensaiar um espetáculo mas é reprimida pelo marido, a plateia foi convidada a debater soluções possíveis, além de subir ao palco e encenar sua sugestão. O exercício rendeu cinco alternativas apresentadas pelo público.
Antes de relembrar o amigo, o diretor e professor de teatro Amir Haddad, pediu que as luzes do Teatro do Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), fossem acesas. ;Não combina com o Boal deixar a plateia mergulhada no escuro e o palco superavalorizado;, explicou. Em seu tributo, Haddad ressaltou a grande contribuição dada pelo amigo ao teatro. ;O teatro não depende do mistério. Essa desilusão faz parte da desmistificação. Todo mundo pode fazer teatro. Ele é uma atividade pública feita por particulares;, defendeu. Seu depoimento, de forte teor político, atribuiu a Boal um esforço para liberar o teatro de uma opressão ideológica imposta pela sociedade burguesa capitalista.
Após assistir à cena que evoca os tempos em que o homenageado dirigiu o show Opinião, Aderbal Freire-Filho fez questão de incluir Boal no panteão de mestres universais da cena.
;O Teatro do Oprimido é, merecidamente, seu legado mais conhecido. Mas ele era um mestre e mestres não podem ser contidos em uma criação. O autor Boal eram muitos. O diretor, também;, exemplificou Freire-Filho, que citou a criação do artista-cidadão como uma das principais contribuições do diretor.
O desfecho ficou por conta da mulher do artista, Cecília Boal, que revelou sua preocupação com uma abordagem menos política e mais superficial do legado do marido. ;Essa quebra dos limites entre o palco e a plateia é um convite à transgressão, mas precisa seguir regras. É importante que seja uma assembleia onde se pensa junto, e de onde se pode sair com uma possibilidade de ação concreta;, reforçou ela. ; Augusto Boal é como Raul Seixas: vai ficando cada vez melhor;, concluiu Amir Haddad.
Veja parte da peça teatral sobre a vida da cantora Nara Leão: