Jornal Correio Braziliense

Diversão e Arte

O pianista Nicolas Stavy apresenta concerto em homenagem a Franz Liszt

Franz Liszt inventou muitas coisas. Do vanguardismo do compositor húngaro nasceu o formato concerto como o conhecemos hoje. Pianistas não faziam recitais como se fossem celebridades antes de Liszt. Celebrar virtuosismo também era novidade inevitável para as compridas mãos do húngaro. Mas foi o fato de ter vivido praticamente um século ; entre 1811 e 1886 ; e de ser um notável curioso que fez do compositor um sujeito de vanguarda. Essa percepção levou o pianista francês Nicolas Stavy a uma investigação particular e muito bem-sucedida. Leitor compulsivo, Liszt compôs peças inspiradas em textos literários ao longo de toda a vida, mas pouquíssimo desse repertório realmente despertou o interesse dos grandes intérpretes, mais afeitos a exibir suas habilidades por meio das peças virtuosísticas. Stavy queria mais e conseguiu compilar um conjunto de cinco obras gravadas no disco Lectures, cujo repertório integra a apresentação de hoje na Sala Martins Pena.

É pelo fim do recital que se deve começar para compreender que o virtuosismo de Liszt não estava apenas na excepcionalidade de suas harmonias e na profundidade de seu romantismo. De la tombe jusqu;au berceau anuncia um século inteiro. O último poema sinfônico do húngaro já apresentava ao mundo as primeiras experiências com a atonalidade mais tarde tão fundamental para Claude Debussy, Béla Bartok e Scriabin. ;O que marca essa peça é o lado depurado, é uma música da qual só resta o essencial, uma música incrivelmente simples, com linguagem harmônica que começa a se afastar da tonalidade, o que é incrível para 1881;, repara o pianista, que sabe se mover entre os silêncios exigidos pela fragilidade da obra, gravada uma única vez pelo inglês Leslie Howard a título de referência enciclopédica em uma integral de Liszt.

É a transição entre a ausência de sons ; detalhe marcante nesse pequeno conjunto de três poemas ; e uma econômica harmonia que pontua a sensibilidade da execução de Stavy. ;O silêncio antecede e precede a música, mas ele não é uma parada. E Liszt o utiliza de maneira espetacular. É muito difícil e importante dar tonalidade e tempo a esse silêncio.; Ou encontrar a maneira de cortá-lo sem deixar a impressão de algo que recai, uma continuidade executada delicadamente pelo francês, que escolheu um piano Yamaha para gravar Lectures simplesmente porque a máquina era capaz de explorar todas as variações entre a calma e a explosão presente nas peças.

Virtuosismo
A literatura, uma das obsessões do compositor, aparece por todo o repertório do disco e do recital. A poesia italiana da Idade Média está em Soneto de Petrarca n; 104 e Apr;s une lecture du Dante. Na interpretação de Stavy, esta última traduz toda a competência orquestral de Liszt. O pianista confessa ter a sensação de tocar outro instrumento quando se embrenha na peça. Assim como se transporta para outro mundo sonoro ao dedilhar as miniaturas intimistas das seis Consolações. ;Tento dar uma ideia desse universo sonoro.; O ineditismo não se aplica ao repertório ; Nelson Freire gravou, recentemente, o Soneto de Petrarca e as Consolações ; , mas Stavy pode carregar o selo de raridade. Os 200 anos de nascimento do compositor renderam uma enxurrada de concertos e discos e como se pode esperar deste tipo de efemeridade, houve muito de mais do mesmo nessa leva. O virtuosismo das rapsódias e estudos é sempre uma oportunidade de se mostrar. Não é o caso do francês, que ousou um repertório desconhecido. ;Mesmo no grande repertório há peças quase inéditas e é nossa responsabilidade levá-las ao conhecimento do público. Meu último disco era Brahms, com o grande repertório, mas tento sempre encontrar um equilíbrio.;

O único caminho errado para descobrir esse universo está na tentação de associar a leituras dos textos que inspiraram Liszt à escuta das peças. Não funciona. Elas nada têm de ilustrativo e corre-se o risco de estacionar em uma escuta superficial e perder-se das nuances.


LISZT DE INSPIRAÇÃO LITERÁRIA
Com o pianista francês Nicolas Stavy. Hoje, às 20h, na Sala Martins Pena do Teatro Nacional Claudio Santoro. Entrada franca.