De tão discreta, a revolução passou despercebida para muita gente. Mas Leonardo Sette, um dos diretores do documentário As hiper mulheres, não escondia um certo orgulho ao comentar sobre a importância daquela sessão de terça-feira, que abria a mostra competitiva do 44; Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. ;É a primeira vez que um longa em digital passa no festival, não é?;, observou ao repórter. Não seria exagero, portanto, eleger aquela projeção como um momento histórico na trajetória do evento. A mostra mais antiga do país aceitou, enfim, a convivência entre a película e o digital.
A inovação provocou transformações significativas tanto na disputa principal ; que passou a incluir filmes que teriam sido excluídos do festival em edições anteriores ; quanto nas seleções paralelas. Na Mostra Brasília, por exemplo, caiu a separação entre curtas em 35mm e as produções de iniciantes, universitários: todos ocuparam a mesma tela, no Museu da República. E a qualidade da projeção, um ;quesito; que amedrontava os realizadores à véspera do evento, não decepcionou: ainda que sem as nuances da película, agradou a cineastas e a plateia.
;O festival teve várias mudanças, muitas foram questionadas. Mas não vi ninguém criticando a inclusão de filmes em digital. A tecnologia deixou de ser uma questão de opinião;, comentou Sette, que dirige As hiper mulheres com Carlos Fausto e Takumã Kuikuro. O longa, que retrata o maior ritual feminino do Alto Xingu (MT), se beneficia da praticidade das câmeras digitais para se embrenhar no ambiente onde vivem os personagens. ;O cinema contemporâneo passa pelo digital. É inevitável. Se o festival ficasse limitado aos filmes em 35mm, seria coisa de museu. Esse foi uma mudança que aconteceu naturalmente, e é por isso que as pessoas estão a encarando com muita naturalidade;, diz.
O curta paulista A casa da vó Neyde, de Caio Cavecchini, é um exemplo de filme que encontrou um espaço na competição graças à alteração no regulamento do festival. ;É uma janela que se abre para os realizadores. Nesse momento da nossa produção, em que todos têm uma câmera ou um celular, a discussão (sobre a valorização da película) deixou de fazer sentido;, afirma. ;O festival está quatro anos atrasado quando se fala em digital. Também acredito que é desimportante discutir a bitola usada para fazer o filme. O que interessa é o que ele mostra, o que ele tem para comunicar;, reitera o diretor Aly Muritiba, do curta A fábrica.
Apesar da boa aceitação de uma tecnologia antes barrada no Cine Brasília, ainda é indiscutível que existe uma diferença marcante entre os detalhes da película e a projeção ;chapada; do digital, transmitido pela empresa paulista Auwê Digital (a antiga Rain). ;Não tem a mesma qualidade;, admite Alexandre Dubiela, diretor da animação Bomtempo. ;A película vai além, tem uma capacidade bem maior. Só que ela é muito cara. Se você tem uma verba como a que eu tive, por exemplo, não teria como exibir o filme;, aponta. Para converter o curta ao 35mm, Dubiela gastaria praticamente todo o investimento que fez no projeto. ;O digital permite que mais pessoas mostrem seus trabalhos;, pondera o cineasta.
Sem defeito
O mineiro Edgard Paiva, da animação 2004, também estava preocupado com o rigor da projeção. Ficou aliviado, no entanto, com um resultado que não degradou o trabalho de cores do projeto desenvolvido por ele. ;É muito bom poder criar e depois guardar todos os arquivos do filme no computador. Hoje, todo mundo está apto a produzir;, conclui o diretor. ;Fico nervoso antes das exibições, porque nem sempre a exibição é boa. Já aconteceu de o filme travar, mas aqui deu tudo certo;, comentou Rafael Urban, autor do curta Ovos de dinossauro na sala de estar.
O contraste entre digital e película, porém, se fez notar na segunda noite da mostra competitiva. Os curtas foram exibidos em digital. Já o longa Trabalhar cansa brilhou na tela com as ranhuras (e a precisão visual) do 35mm. ;Fiz questão de trazer o filme em película. Ele foi produzido assim, não poderia ter sido exibido de outro jeito aqui em Brasília;, afirmou a produtora Sara Silveira, ao fim da sessão. No lançamento comercial do longa, serão distribuídas cópias nos dois formatos: 12 delas em 35mm. ;Achei a projeção digital boa também. Na verdade, não importa a bitola. O importante é a coerência da linguagem utilizada. Acho natural que o festival tenha incluído o digital;, elogiou a codiretora do longa, Juliana Rojas.
No caso do curta Ser tão cinzento, o diretor baiano Henrique Dantas não estava tão apreensivo em relação ao grau de detalhismo da projeção digital. O filme agrega várias ;camadas; de imagens, entre projeções em paredes e película antiga ; a preservação do passado cinematográfico é um dos temas principais de que o filme trata. ;Trabalhei pensando que esse filme poderia ter sido exibido em diversos formatos: em DVD, em película, no computador. O próprio filme propõe um pouco essa viagem;, comenta. Uma aventura que, no Festival de Brasília de 2011, não encontrou resistência.
Colaborou Yale Gontijo
FESTIVAL DE IMAGENS
Diversidade, renovação, irreverência, interesses comuns e descontração marcam as noites do Cine Brasília, como confirmam os cliques do fotógrafo Carlos Moura