O sol nas feridas funciona como um inventário de inquietações e espantos. Por meio desses 63 poemas, Ronaldo Cagiano dá voz à carga de indignação com a qual vê o mundo. O novo livro de poemas que o escritor lança nesta sexta-feira (30/9) no Café Martinica tem um pouco de muitas coisas. ;O homem, as coisas em meio ao cipoal de contradições que tanto nos atormenta. Já dizia o poeta catarinense Lindolfo Bell, que ;o lugar do poema/ é onde possa incomodar;. Sigo esse rastro. Se não for por essa trilha, a palavra poética não tem utilidade nem sentido para mim;, explica Cagiano.
Com poemas inéditos e outros publicados em jornais e revistas, O sol nas feridas é um retorno à poesia depois de 14 anos afastado dos versos. Na última década, Cagiano mergulhou na ficção, mas nunca abandonou o exercício poético. Ele classifica O sol nas feridas como uma obra híbrida, o que de fato fica claro nas temáticas abordadas ao longo do livro. O lirismo pontua alguns poemas, mas há muito da vivência cotidiana embutida nos versos e até uma postura narrativa.
Um poema para Isabella Nardoni, outro para o Plano Piloto e ainda uns versos desesperados endereçados a Murilo Mendes dividem as páginas com reflexões existenciais. ;A poesia está em pânico, Murilo,/diante desse mundo/e seu quartel de demônios;, escreve Cagiano, depois de fazer um autorretrato e refletir sobre a rotina de bancário, já que o autor é também funcionário de banco.
;É uma poesia que reflete intimamente minhas inquietações e perplexidades com o nosso tempo, com a morte, com a nossa realidade e com o próprio lugar da arte e da literatura num mundo regido pelo mercado e premido pelos desafios de uma sociedade alvejada o tempo todo pela solidão e pela incomunicabilidade, aturdida pela insegurança e perdida nos escombros das utopias que ruíram nas últimas décadas;, avisa. E há muitas ruínas em O sol nas feridas.
Seja no gênero seja na linguagem, a poesia é o cerne da produção literária de Cagiano. ;Quando escrevo, ou quando leio um livro de poesia, de conto ou romance, prendo-me principalmente no olhar poético que o autor pode conferir à sua obra. Algo que caminha na direção do que disse Baudelaire e que assimilei integralmente: ;sê poeta, mesmo em prosa;. A construção, a forma literária que não incorpore verdadeiramente esse viés poético, não me satisfaz.;
O último livro de poesia havia sido publicado em 1997. Desde Canção dentro da noite, Cagiano só publicou prosa. No entanto, mesmo quando não está debruçado sobre versos, ele procura tocar adiante um exercício poético. Ele fala em simbiose para explicar como há trânsito entre as linguagens. ;Ao contar uma história, persigo a intensidade e a subjetividade da prosa poética.
Independentemente da leveza ou densidade de uma história ou trama, vou à procura da linguagem que incorpore o legado filosófico da poesia, porque entendo necessário esse artifício, que é capaz de duelar com a secura, a porosidade ou a sisudez de um texto ficcional.; Cagiano gosta da ideia de territórios para falar da poesia. A escrita poética seria a linha que urde a escrita, um recurso harmônico, um espaço de permeabilidade.
O sol nas feridas
De Ronaldo Cagiano. Dobra Literatura, 152 páginas. R$ 30 Lançamento nesta sexta-feira (30/9), às 19h, no Café Martinica (SCLN 303, Bloco A)