O parisiense Alain Fresnot desembarcou no Brasil com 8 anos de idade. E aqui, seu caminho cruzou com o do cinema: em 1976, graduou-se pela Escola de Comunicação de Artes da Universidade de São Paulo. No mesmo ano, apresentou, no Festival de Brasília, Trem-fantasma, seu primeiro longa-metragem, rodado em 16mm.
Voltaria muito tempo depois, em 2003, com Desmundo, vencedor dos prêmios de trilha sonora (John Neschling) e atriz coadjuvante (Berta Zemel).
Hoje, ele lança nos cinemas nacionais seu novo filme, Família vende tudo (leia mais no Divirta-se), que, ele lamenta, não foi selecionado para a atual edição do festival. Na conversa com o Correio, ele reflete sobre a fragilidade do mercado brasileiro e releva a polêmica da queda do ineditismo para os títulos em competição.
O Festival de Brasília ainda tem o peso político de quando foi criado, nos anos 1960?
Não tenho memória muito privilegiada. Não saberia analisar comparativamente. Lembro vagamente minha estada em 1976. O festival sempre foi importante ; sem querer jogar confete ; na política do cinema brasileiro. O que tenho sentido ultimamente é que a curadoria está muito voltada para a experimentação. E isso, de uma certa maneira, restringe, fecha um pouco o festival. Entrei com Família vende tudo e não foi aceito. Eu acho que não é específico de Brasília. Todos os festivais têm que se definir em relação a uma curadoria. Em Gramado, Brasília, ao sabor das alterações das gestões, as pessoas vão experimentando um formato ou outro, tentando posicionar o festival no panorama das mostras. É preciso ter volume de projeções e presença de produtos diferenciados.
Qual a sua opinião sobre as mudanças na estrutura do festival, como a derrubada do ineditismo e o aumento da premiação? Elas podem revitalizar o evento?
Em relação ao prêmio financeiro, evidentemente, só posso ser a favor. É incentivo para os produtores. Em geral, é a única fonte de renda que o filme pode ter, dadas as condições de mercado. O ineditismo, com a produção que a gente tem, que não é tão grande assim ; de 10 a 15 têm vocação efetiva de mercado ;, é difícil ser obtido. Não deveria se levar tão a sério se os filmes passaram ou não em outros festivais. É uma tentativa de individualizar o festival. No caso de Brasília, acho que a importância do festival não se mede pelo ineditismo dos filmes em competição, mas pela quantidade, pela variedade, pelo nível dos debates, das discussões, enfim, pela vivacidade no sentido de que o festival é vivo. Hoje em dia, dificilmente você consegue fazer um festival com ressonância de mídia e importância num nicho. E para o Festival de Brasília, pela sua história e importância, focar no ineditismo ou nos primeiros e segundos filmes de autor é pouco. Acho que todo festival poderia exibir dois longas por noite, para se ter, no mínimo, dez em competição. Um festival de cinco, seis longas sai prejudicado: você não tem uma mostra da produção recente e aí fica forçado a caracterizar muito rapidamente qual o tipo de curadoria, se de filme mainstream ou de filme pequeno. É complicado. Não é fácil ser gestor de festival.
No contexto atual da produção brasileira, dominada por filmes comerciais, qual a importância do festival para o circuito independente?
Acho que é pequena, mesmo ganhando. Temos vários casos de filmes pequenos excelentes que ganharam. Para o diretor, é claro que existe interesse de uma moçada que acompanha. Infelizmente, os festivais não fazem uma diferença estratégica no lançamento de um filme. É bom para a carreira de um diretor. Em geral, quando ganha é porque o filme é bom mesmo. Não sou contra a cultura dos festivais. Eles criaram um mercado alternativo para os filmes. Mas a quantidade de festivais no Brasil está substituindo o mercado efetivo de salas ou mercado de arte. Acho que tem uma deformação no cinema brasileiro, fruto da precariedade, da falta de recursos, da falta de legislação. As pessoas compensam a não exibição dos seus filmes pela presença em festivais. Com certeza, o grande público não vai ver. O mercado exibidor é cruel, seletivo dentro dos seus termos.
Comédias românticas e fitas policiais dominam o circuito nacional. Acha que esses gêneros podem ficar saturados?
Acho que não. Podemos ter filmes bons e ruins em qualquer gênero. Antigamente, tivemos grandes filmes de favela, Rio 40 graus (1955), Rio Zona Norte (1957). Não compartilho a visão de que o cinema brasileiro só mostra pobreza. O cinema americano mostra tudo, faz todos os tipos de formato, está em todos os lugares. O faroeste é um gênero que perdeu a importância nas últimas décadas. Mas, de repente, existe um que é genial e tudo bem. Acho que tem que entender cada produto. Paulo Emílio dizia isso: ;Não existe o cinema, existem os filmes;. Tem que entender cada filmes dentro da sua certidão de nascimento. Se ele nasce de um programa de tevê, se é da Globo Filmes, com uma fórmula etc. ele tem a vantagem de ocupar o mercado do cinema brasileiro. De gerar emprego aqui, de falar português. Se você faz um filme pequeno, uma pesquisa, uma denúncia, uma revelação, é outra coisa. É outro produto. O cinema brasileiro precisa de todos. O problema é que o cobertor é tão curto que as pessoas brigam entre si pelas migalhas.
Fala-se muito de uma influência da tevê na produção brasileira. Acha que já passamos dessa fase?
Acho que temos um viés muito televisivo, sim. O Guel Arraes faz comédias deliciosas, sofisticadas. Tem uma parte que é supertelevisiva, que o público prestigia. Acho que esse nariz empinado não entende a importância disso como fenômeno de mercado, de geração de empregos. Mas, de qualquer maneira, o estado brasileiro está preocupado com isso e tem privilegiado o mainstream. A Secretaria do Audiovisual viabiliza poucos filmes por ano. É pouco mesmo. Por causa de pouco, todo mundo briga e ninguém tem razão.
É um clichê afirmar que o sucesso de filmes comerciais estimula a produção de filmes pequenos. Na prático, isso ocorre?
A indústria precisa de renovação, de oxigenação, de novos talentos. Mas o problema é que como o ano só tem 52 semanas, o cinema continua ocupando apenas 15% do mercado. Pensar nas brigas e contradições entre cinemão e cineminha, digladiando por 15%, é patético, e é por isso que o cinema brasileiro não cresce. O volume de recursos é pequeno. Existem poucos filmes populares e de criação mais profunda. Fica uma briga fratricida entre o roto rico e o rasgado pobre. Coisas como Tropa de elite, que é uma exceção, têm um formato de 3, 4 milhões, que a gente precisa, porque senão o público vai ver sempre as mesmas m; que vêm de fora.
Muitos títulos são lançados primeiro em festivais estrangeiros. Buscar o mercado global é uma boa estratégia?
É uma alegria descobrir um cineasta. O curador lá de fora acha um jovem talentoso e promissor no Brasil e leva para o festival: é status para ele. Para o realizador, é ótimo. Vai conhecer outras produções. Faz parte do fenômeno. Tem jovens que fazem primeiros filmes estimulantes e, às vezes, a curadoria daqui não dá o devido valor. Cinema é uma atividade muito internacionalizada. Nossos cineastas de sucesso, todos eles, têm possibilidade de filmar no exterior: Heitor Dhalia, Fernando Meirelles, Hector Babenco, Walter Salles.