Jornal Correio Braziliense

Diversão e Arte

Artistas da cidade extraem do cerrado a matéria-prima para criar suas obras

O cerrado contém uma paleta de mais de 100 cores. Está tudo no chão. As tonalidades de terra são tão variadas que rendem pigmentos para artistas. Os galhos retorcidos são ótimos para virar matriz de xilogravura. Madeiras, folhas e poeira tem de sobra. Às vezes, até uma carcaça de animal pode render, digamos, um lampejo de criatividade. Para alguns, o cerrado é espaço mais interessante que qualquer loja de materiais de arte muito bem abastecida. Da terra seca e da natureza, eles extraem o necessário para criar. Para muitos, o processo é afetivo. Para outros, é questão prática: algumas cores, por exemplo, não podem ser encontradas em potes e tubos de tintas industrializadas.

A pintora Dulce Schunk sabe disso. Ela já subiu morros difíceis em Pirenópolis (GO), embrenhou-se em depósitos de areia nos quais caminhões de construção recolhem o material e se orgulha de ter herdado barras de areia verde da pintora Goiandira do Couto, artista que pintava com pigmentos do cerrado. A herança é coisa rara, já que as pedras são verdes, cor difícil de encontrar na areia. Dulce gosta especialmente das tonalidades coletadas em Pirenópolis. ;São bem bonitas porque tem mica, que dá um brilho ao pigmento;, explica. ;Quando descobri o potencial da terra, parece que se abriu um grande portal.; Dulce é gaúcha. Chegou a Brasília em 1987 e se encantou pela região. Conseguiu encontrar mais de 100 tonalidades de cores no solo seco do Planalto Central. ;Meus pigmentos estão sempre estabelecendo um diálogo com a terra, mas não faço disso uma bandeira;, avisa.

Para Arlindo de Castro, a relação com o chão do cerrado é visceral. Morador de uma chácara em Sobradinho, o artista sente enorme necessidade de incorporar a paisagem no trabalho. Quando não coleta materiais, pinta a região. Algumas obras só nasceram porque a química da natureza ajudou. Castro descobriu que os formigueiros das cortadeiras guardavam uma terra ideal para fazer cerâmicas. A mistura das folhas levadas para o interior do formigueiro com a terra do local rendeu uma pasta trabalhada em painéis de cerâmica com figuras em alto relevo. ;Minha vivência na chácara é muito rústica e eu não tinha outra coisa a fazer a não ser trabalhar com esses materiais.;

Poeira
Uma chácara também serve de fonte a Elyeser Szturm. Artista e professor do curso de artes visuais da Universidade de Brasília (UnB), Szturm cultua a própria origem goiana na produção artística. ;O cerrado é minha relação existencial e emocional com a paisagem. É uma condição indispensável para que eu me conheça, me repense. É o lugar onde nasci, meu chão, meu ponto de partida e talvez de chegada.; Pedras, cupinzeiros e madeiras são alvos de coletas constantes.

No último fim de semana, Szturm visitou os kalungas em busca de silões para construir uma escultura em homenagem ao artista romeno Constantin Brancusi. Em uma série de objetos, ele usa mantas de silicone para captar marcas da natureza e há anos produz desenhos com a poeira característica dos períodos de seca. ;Crio composições, ritmos que acontecem pela deposição da poeira e isso só pode ser feito na seca, quando tem muita fuligem no ar. Acho a poeira linda;, conta.

Geometrias
Terra é a base dos pigmentos utilizados por Fernando Madeira em pinturas e colagens há muito tempo. Mas o artista não ficou só nas cores. Encontrou também um jeito de aproveitar os restos de madeira do cerrado. Quando encontra uma peça de tamanho e textura adequados, guarda. Um dia, elas viram matrizes de xilogravuras.

;Em geral, pego raízes ou troncos e eles são retorcidos, nunca eretos. Isso dá uma forma interessante e um efeito meio barroco;, conta. O desenho da gravura costuma ser fruto da forma do material. ;Algumas têm formas geométricas mais definidas, outras são mais fractais.; A coleta se estende a folhas, especialmente aquelas em estado avançado de decomposição. São tantas texturas que Madeira fez uma série de fotografias. ;Tenho pena de jogar fora. Olho aquilo e acho tão bonito e penso que um caminhão vai passar em cima.;

As caixinhas de Luís Gallina funcionam como pequenas assemblages construídas com um misto de materiais do cerrado e outros objetos. O artista mora no meio do mato e costuma integrar a paisagem às obras, especialmente às xilogravuras. A coleta mesmo, quando acontece, ele reúne nas caixas. Dissecação contém desenhos do avô no leito de morte e o crânio de uma coruja.

;São vivências do cerrado mescladas com experiências pessoais;, repara. ;Quando vim morar no cerrado, passei a trabalhar mais essas vivências.; A série Cascas e carcaças tem como base os restos de árvore encontrados em beira de rios e o pau-ferro típico da região funciona bem como matriz de xilogravura.