Jornal Correio Braziliense

Diversão e Arte

Críticos e cineastas falam sobre a produção autoral em coletânea


;No que me concerne, não faço concessões aos espectadores: essas vítimas da vida, que pensam que o filme é apenas para o deleite e o prazer, e que não sabem nada sobre a própria existência;. O tom raivoso de citação atribuída ao diretor polonês Andrey Zulawski, no capítulo que examina o filme Diabel, levanta muito da bandeira autoral defendida pelos longas esmiuçados em 58 artigos, no livro Os filmes que sonhamos ; Volume I, recém-chegado ao mercado. A visão de mundo radical, levada às telas em 1972, por Zulawski, foi banida da Polônia só tendo reencontrado o público em 1988. Muitos dos títulos comentados na coletânea, aliás, deixaram o limbo, por causa do lançamento em DVD. ;São filmes muito falados, mas pouco vistos. Estão presentes em livros, mas que ninguém via, porque, mesmo com a pirataria, não eram acessíveis nem na internet;, explica o crítico Paulo Henrique Silva, um dos convidados na produção do livro organizado por Frederico Machado.

No ;texto de fôlego; encomendado, Paulo Henrique analisa O conformista (Bernardo Bertolucci), depois de ter feito para si a pergunta: ;O que eu poderia escrever que já não tenha sido dito sobre um filme com quase 40 anos?;. Decifrar o frescor da obra levou o autor à noção cômica embutida em O conformista. ;Jean-Louis Trintignant faz um tipo retraído e visivelmente desconfortável por sua posição de funcionário público comum, como muitos losers das comédias americanas;, assinala no texto. ;O lado cômico persegue a narrativa criada ao redor do personagem meio patético. É uma característica que provoca estranhamento, por se tratar de um tema muito pesado como é o fascismo italiano;, comenta o entrevistado, há 16 anos dedicado à crítica.

As remissões a elementos cômicos, na publicação, povoam os textos em torno de Bang bang (Andrea Tonacci), ;road movie tupiniquim com personagens que parecem ir de um lugar a outro de maneira errante;, como descreve Fabio Carmaneiro. Personagens antropofágicos, ;que arrotam um filme completamente inventivo;, foram a base para reforçar o parentesco com o tropicalismo. Mesmo pisando o nonsense, pelo que indica o texto, o diretor brasileiro encontra terreno para reflexão. ;Na ausência de linguagem, nas fronteiras da civilização, reaparece o recalque de violência e irracionalidade da civilização;, comenta o autor, ao descrever o efeito calculado e caótico da sobreposição de sons e ruídos no filme realizado há quatro décadas.

Filme de juventude
Também, à época da realização, um estreante em longa, David Lynch tem o projeto Eraserhead (1978), viabilizado com módicos 20 mil dólares, examinado por Marcelo Miranda, em Os filmes que sonhamos. ;É um filme da juventude, ele ainda fez na faculdade, mas concluiu depois. A produção é baseada na vida real dele, envolvendo uma gravidez indesejada da namorada;, conta Miranda. Até a irmandade física entre personagem e cineasta, pelo ;cabelo esculpido;, não passa despercebida. ;Pelas próprias angústias, cinematograficamente, Lynch chegou a algo rico, complexo e arriscado. Mostro, no texto, como o longa foi fundamental para os filmes posteriores dele;, explica o crítico.

A capacidade de contextualizar também figura na análise de Kafka, destrinçado por Daniel Feix. ;Tendo lido boa parte da obra do Franz Kafka, a gente percebe que todo o universo dele está lá. No capítulo que escrevi, quis posicionar o filme na obra de um diretor reconhecido como é o Steven Soderbergh. Um filme que deu prejuízo e não foi nada bem de carreira ;, obtendo menos de 10% do custo revertido em bilheteria, nos Estados Unidos;, ressalta Feix. Vale a lembrança de que, com a estreia (no anterior Sexo, mentiras e videotape), Soderbergh ;havia causado muito impacto, pelas premiações;, como relembra o crítico que atenta para ;qualidades esquecidas; de Kafka. Da mesma fonte literária, sai outro capítulo dedicado aos elementos kafkianos: O castelo, ponto vigoroso ainda no texto de Daniel Feix.

Filhos do realismo

Ainda no livro organizado por Frederico Machado, vemos diretores referendados ao posto clássico, como é o caso do polêmico Elia Kazan. À frente de ;um cinema que herda da literatura americana o melhor de sua carpintaria narrativa;, o criador do Actor;s Studio tem ressaltado o casamento com ;o texto teatral; de expoentes como Tennessee Williams, Arthur Miller e Edward Albee, na depurada percepção de Geraldo Veloso, que responde pelo exame de Clamor do sexo (1961). O autor identifica a gênese criativa de Kazan à cena dos anos de 1930, em que ;o teatro se revê, em direção a um realismo; feito por figuras de ponta como Lee Strasberg, John Houseman e Orson Welles. Desenvolvidas as ideias, Veloso atesta o cineasta como ;um dos maiores cronistas do desenvolvimento da história americana;.

Entre temas como o lacunar período de avanços no desenvolvimento da escrita médica relacionados a Aids ; registrado por Heitor Augusto, ao analisar o documentário E a vida continua (;uma crônica da ignorância e dos interesses escusos que sobrepuseram a defesa da humanidade;, no início dos anos 1980) ; e casos de personagens reacionários que cercam Billy, o menino batalhador de Kes (um Ken Loach de 1969), Os filmes que sonhamos concede arena para a casta marginalizada.

Tendo a literatura como ;área de contato; com o cinema, o crítico João Nunes ; descrente ;das mensagens no cinema; ;, assistiu ao segundo longa de Loach, por quatro vezes, para firmar as conclusões. A reflexão baliza teses, nem tão diretamente associadas a Kes, como a de que ;a palavra, coadjuvante de luxo, tem tomado espaço excessivo num tipo de cinema praticado hoje com nítida influência da televisão (notadamente no Brasil);. Em termos pontuais, para ele, Kes traz uma ;abordagem em torno do garoto, deslocado e ferrado na vida, sendo muito especial;. Para além do exame da questão social, o filme rende, ;em termos poéticos;. Billy, que não gosta de futebol, por exemplo, é obrigado a ficar no gol. ;É um momento em que ele busca uma opção: esquece de tudo, e sobe na trave, partindo para malabarismos, da maneira mais inusitada. É uma cena emblemática: ele se permite sair da realidade e partir para a poesia;, conclui João Nunes.

Estilhaços críticos

;Todos (os personagens) pensam apenas em si ; ou quando apresentam altruísmo, esse é mera desculpa para exibicionismo pessoal (;) O diretor nos convida a olhar com certa ternura a esses personagens desesperados, cuja existência está no limite entre o trágico e o patético;
Alysson Oliveira, em torno de Felicidade (1998, foto), assinado por Todd Solondz


;Podemos dizer que, de certa maneira, os personagens de Os imorais se equivalem e o que definirá o sucesso de cada um e o fracasso de outro será o quanto serão capazes de se adaptarem a circunstâncias que mudam a todo o tempo;
Rafael Cicarrini, em análise a Os imorais (1990), filme de Stephen Frears


;Com foco na vida da escritora neozelandesa Janet Frame, o filme é a jornada de um bichinho assustado que sentia a vida em todo o seu esplendor e a traduzia em poesia, muito embora não suportasse o mundo em que vivia, nem as pessoas em que nele viviam;
Luiz Joaquim comenta Um anjo em minha mesa (1998), de Jane Campion


;Um marco na cinematografia inglesa e um dos filmes definitivos sobre a rebeldia escolar, tendo resistido ao teste do tempo em seu frescor e sua beleza;
Cecília Antakly, sobre If; (1969), de Lindsay Andersson


;As canções praticamente assumem a função de narrador. A letra da música já deixa o alerta: ;não gaste suas economias com o amor;;
Marcelo Janot comenta O fundo do coração (1982, foto), de Francis Ford Coppola


;No livro Um cinema da solidão, do ensaísta Robert Phillip Kolker, as figuras atormentadas como Travis Bickle (de Taxi driver) e Harry Caul (de A conversação) ;respondiam a nuvens escuras que pairavam sobre a sociedade norte-americana, como assassinatos de homens públicos, a guerra do Vietnã e o escândalo Watergate; (;.) Esses ;filmes de paranoia; eram nítidos exemplos ;impotência e desespero;, e sinalizavam o desastre, a quebra da confiança e do sentido de comunidade;;
Sergio Rizzo, sobre A conversação (1974), de Francis Ford Coppola