Uma cena do filme O iluminado, de Stanley Kubrick, assombrou de tal forma o inglês James Leyland Kirby que alterou por completo a trajetória do músico inglês. No trecho, o escritor Jack Torrance (interpretado por Jack Nicholson) caminha por um corredor largo e vazio do Overlook Hotel, onde está hospedado, quando encontra um salão de baile. Ao entrar naquele cômodo, algo estranho acontece: é como se o homem, já atormentado por delírios de toda sorte, tivesse caído num passado distante, onde homens e mulheres vestidos a rigor tomam drinques ao som de velhas melodias de jazz. Dali em diante, apaga-se o limite entre delírio e realidade.
São imagens nostálgicas. E assustadoras. Dois adjetivos que, juntos, ajudam a definir a sonoridade do projeto The Caretaker, que Kirby desenvolve há 12 anos. Desde o álbum Selected memories from the haunted ballroom, de 1999, o artista (hoje com 37 anos) cria faixas experimentais que tentam simular a forma desordenada (e, às vezes, doentia) como o cérebro humano processa as lembranças. Não é uma obra fácil. Com samplers e barulhos que desconcertam o ouvinte, o músico compôs álbuns que soam como provocações ; e miram plateias, no mínimo, destemidas. Fazer o check-in na estalagem do Caretaker sempre exigiu a disposição (e a paciência) de um desbravador.
Mas é no oitavo trabalho da carreira, o ótimo An empty bliss beyond this world, que essa sonoridade ;de laboratório; se torna mais calorosa ; e, em alguns momentos, até acessível. No disco, Kirby seleciona antigas melodias de jazz, que animavam os salões nos anos 1930 e 1940, e toma esse material em 78rpm (encontrado numa loja de discos em Stockport) como base para um trabalho minucioso de edição. Sutilmente, o músico altera a estrutura das faixas originais (elas terminam abruptamente e repetem trechos sem uma ordem linear), adiciona camadas de efeitos de estúdio, com ruídos de vinil arranhado. Por fim, cria uma espécie de trilha sonora sombria para filmes de David Lynch ; com elementos sonoros que o público encontra nas comédias ;retrô; de Woody Allen.
Ciência e arte
A intenção do produtor, desta vez, é criar sons que remetam aos processos mentais de pessoas que lutam para relembrar imagens do passado. ;Quando você fica mais velho e olha para trás, percebe que tudo mudou. Nossas memórias antigas, de quando éramos mais novos, todas se transformam em algo diferente. Isso é o que tento capturar;, comentou o artista ao site Altered zones. Um outro ponto de referência é um estudo da Universidade de Medicina de Boston publicado em 2010 sobre o papel da música no tratamento de pacientes com Alzheimer. Os especialistas chegaram à conclusão de que informações transmitidas musicalmente são lembradas com mais facilidade.
A colagem de Kirby, que também desenvolve o projeto noise/experimental V/Vm, alterna trechos agradáveis (acolchoados por sopros e pianos) e vinhetas atonais, em 15 faixas. O elemento polêmico, no caso, é que o produtor não dá crédito aos músicos que escreveram e interpretaram as faixas originais. ;O disco provoca questões difíceis sobre o quanto de trabalho artístico verdadeiro envolve um método como o de Kirby;, escreveu o resenhista Andrew Hall, do site Coke Machine Glow. O ;roubo de sons;, no entanto, parece proposital: no disco do Caretaker, eles aparecem e desaparecem como rastros longínquos de memória, sem autoria ou nome. São efêmeros. O efeito que provoca no ouvinte, no entanto, é duradouro.
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Conheça outras colagens musicais de James Kirby
V/Vm
; Iniciado em 1996, o projeto já tem 21 discos, com uma coleção de experiências que vai do noise ao pop dos anos 1980. Em 2006, lançou 603 faixas de áudio via web, de graça.
The Stranger
; Com dois discos, The stranger (1997) e Bleaklow (2008), liberta o lado mais sombrio do produtor e foi comparado à eletrônica de Aphex Twin.
Leyland Kirby
; Numa discografia já com quatro álbuns (o mais recente, Sorry, the future is no longer what it once was, de 2009, é triplo), o projeto mais pessoal do músico soa pessimista e etéreo ; para iniciados.
THE CARETAKER
Projeto de James Kirby. O disco novo, An empty bliss beyond this world, foi lançado pelo selo History Always Favours the Winners. Importado. ****