As cortinas se abrem e o espetáculo começa. Bailarinos invadem o palco com seus gestos seguros e movimentos vigorosos. Muitas vezes, os braços e pernas definidos e a presença altiva em cena desviam o olhar das marcas de expressão, da performance menos acrobática, dos cabelos brancos que insistem em surgir nas têmporas. A cada dia, a dança deixa de ser território de atletas com fôlego de criança e elasticidade perfeita, para dar lugar, sob os holofotes, a quem acumula sua trajetória no corpo, a exemplo de nomes como Pina Bausch e Mikhail Barishnykov. Hoje, esse universo está se tornando mais democrático e bailarinos já não precisam deixar a ribalta ainda durante a plenitude criativa, conseguindo estender sua fase produtiva até a maturidade.
Em Brasília, Yara de Cunto é símbolo da geração que acumula experiência sobre as sapatilhas. Aos 71 anos, ela subverte a regra de que dança é sinônimo de desempenho físico e se destaca por sua expressão artística. ;Há uma dramaticidade, uma história de vida marcada no corpo e isso aparece em quem tem coragem de dançar com essa idade. Hoje, as pessoas vivem melhor, a saúde é visível e o potencial corporal se desenvolve;, acredita a ex-bailarina do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, que acompanha os talentos ainda em atividade e atesta: aos 54 anos, Ana Botafogo, primeira-bailarina do mesmo teatro, ainda surpreende tecnicamente.
Ano passado, Yara voltou ao palco no espetáculo No princípio, criado pela bailarina, coreógrafa e professora Soraia Silva. O retorno fez com que sua cabeça fervilhasse de ideias, como dirigir um vídeo-dança e criar novas coreografias. ;Tenho um problema no fêmur e quando ando é visível, mas no movimento da dança, desaparece;, afirma.
Soraia, criadora do espetáculo, incluiu no elenco os integrantes de seu grupo de pesquisa, na Universidade de Brasília (UnB), bailarinos com idades variadas. Ela mesma, aos 46 anos, continua dançando com frequência. ;A dança passa pelo corpo, mas também pelo espírito. E ele é como o vinho: quanto mais velho, melhor;, acredita a coreógrafa e professora, que já assistiu à eterna primeira-bailarina cubana, Alícia Alonso, rodopiar em suas sapatilhas de ponta com mais de 70 anos. ;As pessoas estão envelhecendo com mais vigor, a juventude está se estendendo. Hoje, me sinto mais preparada do que antes. Meu corpo responde melhor a alguns movimentos. Você vai preparando seu espírito, aprendendo a usar mais sua energia;, ensina ela.
Os limites, garante Soraia, surgem na cabeça. Ela mesma já excursionou grávida, com quase 20 quilos a mais, dançando em apresentações itinerantes pelo país. A idade e o sobrepeso não são os únicos caminhos para descobrir novos caminhos para o corpo. A inclusão de pessoas com necessidade especiais em companhias de dança cresce mundo afora. ;Tudo é questão de como lidar com a matéria. Tem só uma perna? Dance com essa perna. Todo corpo é expressivo;, afirma.
No comando do Núcleo Alaya Dança desde a década de 1980, a coreógrafa Lenora Lobo também investe em um método mais democrático que o rigor da dança clássica. No chamado teatro do movimento, o que entra em cena é a movimentação singular, que permite que cada intérprete se torne um criador. O foco não está nos saltos, giros e piruetas, mas nas intenções e no amadurecimento da expressão artística. ;Kazuo Ohno dançou até os 90 anos e abriu um leque de possibilidades para os bailarinos mais maduros;, afirma ela, que conta com elenco na faixa etária entre 28 e mais de 50 anos.
Mudança
Ao subir ao palco, o bailarino não leva apenas sua experiência artística, mas suas memórias, sua vida familiar, profissional, as atividades que pratica. ;Não existe separação. A pessoa e o bailarino são a mesma coisa. O corpo vai mudando e o coreógrafo precisa acompanhar essa mudança. Vejo essa diferença em mim. Não consigo mais ficar pulando durante três horas, como fazia aos 25 anos, mas hoje sou capaz de fazer sínteses e movimentos que antes eu não alcançava;, admite Lenora.
Uma das veteranas do Alaya é Aida Cruz, em plena atividade aos 52 anos. Embora divida o tempo de ensaios com o trabalho, a preparação para se tornar monja budista e a companhia do filho adolescente, Aida prepara um retorno, em breve, aos palcos. ;O corpo começa a ter uma resposta diferenciada. É como um jogador de futebol: uma hora o joelho não responde mais. Mas existe a questão da teatralidade, de fazer as coisas mais lentas, mais densas;, sinaliza. O passar do tempo também traz uma nova postura diante da plateia. ;Não estou ali porque quero aparecer, é por prazer. Agora, não tenho mais necessidade de mostrar a minha técnica. Ela já está em mim, no meu percurso;, garante.
Mais experiencia, mais diversão
Integrante do Núcleo Alaya Dança e do elenco de No princípio, Alexandre Nas segue dançando e pesquisando dança aos 48 anos de idade. Depois dos 40, no entanto, a tarefa ficou mais difícil, mas ele encontra meios de adaptar seu corpo à nova fase. ;A gente perde potência muscular, mas se apropria do corpo e de si mesmo, dá mais nuances ao movimento. Tem mais domínio, se arrisca mais, pode improvisar à vontade. A gente se diverte mais;, descreve. Nas explica que é mais difícil se manter no universo do clássico, que trabalha contra a gravidade e investe na imagem virtual de leveza. O bailarino experiente, por outro lado, ganha mais espaço entre as articulações, trabalha melhor os encaixes corporais e ganha tônus em sua musculatura profunda, que sustenta o tronco, perdendo a sustentação dos membros periféricos, como pernas e braços. Técnicas novas de saúde e terapias corporais, como pilates, Rolfing e Alexander Technique, ajudam a manter a musculatura e a elasticidade em dia. O resultado se traduz em longevidade. ;A dança não está mais só ligada à vitalidade, mas também à experiência do corpo. Hoje, é comum que os grandes grupos criem;companhias 2;, para os bailarinos mais experientes;, destaca.