Diversão e Arte

"Tudo o que fiz foi para chegar ao palco", revela Ney Matogrosso

José Carlos Vieira, Irlam Rocha Lima
postado em 07/08/2011 20:36

Aos 70 anos, completados no último dia 1;, o cantor diz viver, há muito, no tempo da delicadeza. Brasília, para Ney Matogrosso, é uma lembrança bonita e onde tudo começou. "Muita coisa da música popular brasileira chegou a mim por meio dos amigos da UnB", disse ao Correio, numa amável e longa conversa por telefone. Lembrou-se dos Secos & Molhados e dos shows que era obrigado a fazer para a censura e os burocratas da ditadura e também do encontro que teve com Renato Russo: "Que país é esse?, da Legião Urbana, é atualíssima". Não se furtou em falar da sua vida íntima, da saúde e disse que está sempre apaixonado.

Brasília foi, na década de 1960, o ponto de partida para Ney de Souza Pereira, um futuro cantor que viria a tornar-se conhecido e reverenciado como Ney Matogrosso. Que lembranças você guarda daquela época?
Mais do que ser o lugar onde me descobri como artista, foi em Brasília que me entendi como gente, onde começou minha descoberta pessoal e comecei a concretizar tudo o que sonhava fazer. Aos 21 anos, era dono do meu nariz, com liberdade para me aproximar das pessoas, de tudo. Embora fosse um modesto funcionário público (Ney trabalhou na unidade de pediatria do Hospital Distrital, atual Hospital de Base), tinha contato com o pessoal da área diplomática e da universidade (UnB), que representava a inteligência. Era tudo misturado. Eles me apresentavam muita coisa ligado à arte e eu absorvia aquilo avidamente.

Como foram seus primeiros passos na arte?
Meu envolvimento inicial foi com o teatro. Fiz um curso e ia participar da peça A invasão, de Dias Gomes, que foi proibida pela censura, antes de estrear. Começávamos a viver na época, sob a égide do golpe militar, e Dias Gomes era perseguidíssimo.

E como a música entrou em sua vida?
O meu timbre chamava a atenção e eu fui convidado para integrar o Madrigal de Brasília. No coral só cantávamos peças clássicas. Quem sugeriu que eu cantasse música popular foi o Paulinho Machado, que estudava na UnB e era músico e compositor (autor de América do Sul, que Ney gravaria no primeiro disco solo). Lá na universidade formamos um grupo, que passou a se apresentar no programa Dimensão, da TV Brasília. O programa ia ao ar na madrugada e tinha muitos espectadores. Fui descoberto neste espetáculo, pelo dono da Cave de Roi (casa noturna que existiu na 413 Sul), que me levou para fazer shows. Muita coisa da música popular brasileira chegou a mim por meio dos amigos da UnB.

Que outras recordações você tem da UnB daquele tempo?
Acompanhei de perto toda a destruição dos laboratórios da universidade pelos repressores da ditadura. Eles quebravam todos os aparelhos, com os quais os professores faziam pesquisa, com cassetete; e rasgavam todos os livros que não eram escritos em português. Livros de arte e de ciências exatas foram destruídos por eles. Naquela época, havia na universidade professores, PHDs, de várias nacionalidades e todos eles foram demitidos.

Mais tarde, ao voltar à capital com o Secos & Molhados, o show no Ginásio de Esportes foi alvo da censura. Como vocês reagiram?
Quando estreamos em São Paulo, não houve reação da censura, porque ela não estava preparada para aquilo. Como não falávamos contra o governo, inicialmente o show foi liberado. A transgressão estava na atitude, em nosso comportamento no palco. Mas quando começamos a turnê, em cada lugar que chegávamos, sempre era exigida uma apresentação antes para os censores. Em Brasília, num mesmo dia fizemos três shows: os dois para o público à noite, e outro, à tarde, para a censura. Este, na verdade, foi para os privilegiados, para os convidados das autoridades. Fizemos com figurino, luz e tudo, mas eu cantava, andando de um lado para outro no palco, sem dançar.

A censura continuou lhe causando problemas, no início da carreira solo?
Eles não me deixavam em paz. Quando vim a Brasília com o Homem de Neanderthal, meu primeiro show solo, não pude fazer em teatro. Me mandaram para o ginásio de esportes do Colégio Marista, meio escondido. Dois anos depois, com o Bandido, só pude fazer no ginásio do Iate Clube, mas não me permitiram dar entrevista para divulgá-lo. Fui proibido também de fazer um número de plateia, mas fiz. Por conta disso, fiquei longe da cidade por dois anos. Eu, Rita Lee, Raul Seixas e outros artistas nos tornamos personas non gratas na capital.

Chamou sua atenção o rock de Brasília, que colocou a cidade no mapa da música brasileira na década de 1980?
Acompanhei tudo e entendi perfeitamente a agressividade contida na música feita por aquelas bandas. E compactuava com tudo. Que país é esse?, da Legião Urbana, mantém-se atualíssima.

Você conheceu Renato Russo pessoalmente?
Estive com o Renato duas vezes aqui no Rio. Uma vez , encontrei-o na rua. Numa outro estive com ele na festa de aniversário de um artista. Renato estava conversando com o Caetano (Veloso) num quarto e me juntei aos dois. Ele era muito acelerado e a conversa não era linear. Ia de um polo a outro. Conheci também Cássia Eller. Ela, como o Cazuza, era uma pessoa doce no trato pessoal. Quando a conheci, ela acabara de ter o Chicão e fazia um show, numa casa de espetáculos. Fui ao camarim e vi o bebezinho deitado num colchãozinho, e a Cássia totalmente mãe.

Setenta anos é o tempo da delicadeza?
Já estou neste tempo há algum tempo. Acho que o 7 é um número cabalístico e vou festejar os 70 anos porque acho que 10 x 7 tem alguma importância.

Você sempre se preocupou com a saúde?
Essa preocupação veio depois que fui alertado pelo Marcos (De Maria, médico com quem viveu durante vários anos, que morreu vítima de Aids). Antes eu era muito largado. Acordava, tomava um copo de leite, engolia uma gema de ovo e ia para a praia. Ficava lá até as 7 da noite e só comia uma rodela de abacaxi e tomava um mate. Não me importava em me alimentar direito. Quando conheci o Marcos, ele me orientou no sentido de comer folhas, verduras, legumes, alimentos com fibras. A partir dali comecei a cuidar melhor da alimentação e nunca mais parei.

Quando começou a fazer exercícios físicos?
Isso foi depois, aos 56 anos. Até hoje, diariamente uma pessoa vem à minha casa e com ela faço alongamento, musculação durante uma hora. No verão faço também hidroginástica.

Há uma preocupação com a parte estética?
Meu cuidado é em relação à saúde. Aos 30 anos, era magrinho, bonitinho e tinha tudo em cima. Antes eu pesava 53kg e hoje estou com 62kg. Me peso regularmente, para ver se posso me exceder. Se passo dos 62kg, fico durante três dias comendo uma boa salada no jantar e meu peso volta. Mas não tenho sofrimento, não tenho restrição alimentar. Como uma colher de doce e fico satisfeito. Antes só bebia refrigerante, mas hoje só tomo água. Mas se um dia me dá vontade de tomar uma Coca-Cola, tomo sem problema.

Continua aberto à paixão?
Sempre. Quando era mais novo, achava que estar apaixonado era estar descontrolado. Mas fui vendo que existiam outras nuances e que a paixão é apenas o início de alguma história. Depois a paixão arrefece e outras coisas se apresentam.

E como anda a sexualidade?
Tenho uma sexualidade plena, não diminuiu em nada. A intensidade é que agora é menor. Antes eu era escravo do sexo e não ia dormir sem transar. Havia dia em que era com mais de uma pessoa. Hoje é menos, mas é melhor.

Como um dos primeiros a defender publicamente a orientação sexual das pessoas e o combater o preconceito, qual é a sua visão sobre a lei que oficializa a relação homoafetiva?
Quando falam em casamento entre pessoas do mesmo sexo eu acho estranho, porque hoje nem homem e mulher se casam mais. Mas vejo essa decisão do Supremo Tribunal Federal como muito positiva e civilizada. Quem vive com alguém durante muito tempo e constrói algo junto, isso tem que ser dos dois. Na época em que a Aids estava devastando, eu vi muita gente que havia construído algum patrimônio junto, quando o parceiro morria, a família do outro tomava tudo. Temo agora o outro lado da moeda. Pode vir a ocorrer a seguinte situação: alguém vive cinco anos com um parceiro e depois quer tirar proveito disso. Mas isso é o desenrolar da história que poderemos assistir ainda.

A individualidade deve ser preservada?
Tenho relação amorosa, mas não quero morar com ninguém. Não gosto disso. O ideal é cada uma morar em sua casa. Se for no mesmo prédio, é melhor.

Aos 70 anos, gravar disco e estar no palco ainda lhe excita?
O palco, especialmente. Desde os 30 anos, tudo o que fiz foi para chegar ao palco. A música é um pretexto. Quando vou gravar um disco, o que primeiro vem à mente é o show. Agora estou selecionando repertório para um novo disco. Já tenho 11 músicas escolhidas. Mas só vou gravar quando tiver o esboço do show que farei a partir desse trabalho.

Há a expectativa de bater o recorde de permanência em cartaz, com a turnê do Beijo bandido, o show atual?
O Beijo bandido completa dois anos de estrada em setembro e, pelo visto, a turnê terá continuidade. Tenho convites para fazer o show em vários locais. Me apresentei em Portugal duas vezes e entre setembro e outubro estarei na Europa, para apresentações na Espanha, na França e na Alemanha. Fui a Brasília com o Beijo bandido, no ano passado, no Centro de Convenções, mas adoraria voltar a fazê-lo na Sala Villa-Lobos, agora que estou lançado o DVD do Beijo bandido.

Sai governo e entra governo e os escândalos de corrupção continuam. Para piorar, não se vê na sociedade nenhum ato de indignação. Por que tanta passividade?
A Dilma (Rousseff) me inspira confiança, mas a corrupção dentro e ao redor da política é tão grande que leva as pessoas a acharem que todo mundo é safado; e que não adianta se indignar. Na verdade, todos os partidos estão envolvidos com essa pouca vergonha. Mas está chegando a um grau tal, que tenho a impressão que pode haver uma reação, uma revolta, como o que tem ocorrido em outras partes do mundo.

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