Coube a Aguinaldo Silva contar, a um país amordaçado pela ditadura, o dilema dos brasileiros cariocas e suburbanos que acordavam às 4h da madrugada para tentar chegar à Central do Brasil, espremidos como bagagens em vagões destroçados pela falta de manutenção e, é bom dizer, de violação à cidadania. De tempos em tempos, quando algum ser humano despencava e se estatelava no meio dos trilhos, os passageiros eram obrigados a desocupar os vagões e pagar outra passagem. Aí, eclodia um quebra-quebra, quase uma revolta popular. Isso num período em que a população brasileira era tratada como uma ;carneirada; pelo poderio militar, que se mantinha no comando da nação havia 11 anos, armado até os fios do cabelo.
A história publicada em 7 de julho de 1975 foi estampada na capa do jornal Movimento. Chegou às bancas esquartejada pela censura prévia, mas estava ali diante de 21 mil leitores que a levaram para casa e a consumiram como se estivessem diante de um oásis. Afinal, aquele Brasil era um país fantasioso, que ;crescia; sob a falácia de milagre econômico e estava prestes a entrar num colapso financeiro.
; Quem leu Movimento n; 1 não pôde imaginar o tamanho da batalha que foi travada para aquela edição chegar às suas mãos. Na semana do lançamento, os editores e a equipe se revezaram entre a redação, a sede da Polícia Federal e as oficinas. O esforço para suprir os buracos da tesoura não foi pequeno. Os censores vetaram nada menos que quatro propostas de capas do jornal, além de 18 matérias inteiras, oito fotografias, 10 ilustrações e 12 charges, conta Carlos Azevedo, no livro Jornal Movimento, uma reportagem (Manifesto Editora).
A obra será lançada hoje, às 19h, no Sebinho (406 Norte). Com o precioso livro de resgate da história do semanário Movimento (1975 ; 1981), que tem reportagem de Marina Amaral e Natalia Viana, há um tesouro anexo: um DVD com todas as 334 edições do periódico, incluindo as que foram totalmente proibidas. O projeto de financiamento é da Petrobras. Está lá, por exemplo, a histórica edição n;154, de 12 de junho de 1978, que anuncia o fim da censura prévia ao jornal. A capa sobre a morte de Vladimir Herzog, que tinha um lindo desenho de Elifas Andreato, era finalmente publicada, três anos depois de ser vetada.
; Movimento não podia dar uma só linha sobre a morte do jornalista Vladimir (Vlado) Herzog, da TV Cultura, no Doi-Codi, em 25 de outubro de 1975. E até o fim da censura, em junho de 1978, o jornal nunca pôde se referir a Vlado (;) Movimento não pôde publicar nada, mas os membros da equipe participaram ativamente das manifestações, convocando as pessoas a comparecerem ao sindicato dos jornalistas, de onde iriam se originar os protestos, destaca o autor.
Conselho de notáveis
Carlos Azevedo está no núcleo fundador de Movimento. O expediente do número inaugural mostra uma redação de sonhos. Raimundo Pereira era o editor-chefe e, no conselho editorial, conviviam os notáveis Chico Buarque de Holanda, Fernando Henrique Cardoso, Hermilo Borba Filho e Orlando Villa-Boas. Na criação de textos e arte, estavam Aguinaldo Silva, Elifas Andreato, Fernando Peixoto (cultura), Bernardo Kucinski. Jean Claude Bernardet escrevia sobre cinema e José Miguel Wisnik era um dos editores assistentes.
; O jornal foi utilizado como instrumento de debate pelo movimento estudantil, pelos intelectuais de oposição e movimentos populares, nos vários estados. Dessa mobilização, surgiriam as sucursais e uma rede de distribuição do jornal em todo o país. O núcleo central das atividades do jornal sempre foi São Paulo, destaca Carlos Azevedo.
Os movimentos sociais, que reacendiam a partir das mortes de Vlado e do operário Manoel Fiel Filho nos porões da ditadura, articulavam-se em torno de Movimento, numa rede de cooperação e apoio, como a oposição sindical metalúrgica e as Comunidades Eclesiais de Base.
; Eu via que o jornal estava se constituindo como um instrumento muito bom no interior do país (;) Tanto que se você olhar, quase todas as pessoas que fundaram o PT, os deputados, todo esse pessoal era gente do jornal Movimento, que ajudou a criar lideranças, não tenho dúvidas disso. E são centenas, destaca o repórter Murilo Carvalho.
Movimento acabou mergulhado numa grave crise financeira, de identidade política numa confusa época de transição e abatido por conta do terrorismo de direita que acometeu o país entre 1980 e 1981, com bancas de jornais sendo alvo de explosões e ameaças de atentados. A última edição está agora a alcance de todos e a história mostra que o fim foi realmente aparente. Movimento está na base da luta pela redemocratização do Brasil.
JORNAL MOVIMENTO, UMA REPORTAGEM
De Carlos Azevedo, com reportagem de Marina Amaral e Natalia Viana. Manifesto Editora. Patrocínio Petrobras, 336 páginas. Acompanha DVD com as 334 edições do jornal. Preço: R$ 59. Lançamento, hoje, às 19h, no Sebinho (406 Norte).