;O que você faria se tivesse 20 anos em 1968?;, pergunta Ruy Castro no prefácio das memórias de Solar da Fossa (Casa da Palavra), de Toninho Vaz. Provavelmente, e antes de qualquer outra coisa, teria vontade de conhecer ; ou até de morar mesmo ; um casarão de dois pavimentos no bairro do Botafogo, no Rio de Janeiro, ladeando a Paróquia de Santa Terezinha. Os 85 apartamentos da pensão, ocupados de 1964 a 1971 por centenas de precoces agitadores, serviriam de casulo de boa parte da cultura brasileira da segunda metade do século. Atores, músicos, cineastas, jornalistas, escritores, muitos deles estavam ali, morando juntos, como Caetano Veloso e Gal Costa, ou pousando na casa de colegas e amigos, visitantes como Gilberto Gil, Zé Rodrix e Marieta Severo. Alguns à procura de uma boa prosa ou, em alguns casos, de um affaire. Para quem conhecia bem o lugar, era o Solar da Fossa, demolido em 1972 para dar lugar ao shopping Rio Sul oito anos depois. Em 2011, é reerguido pelo esforço do curitibano Toninho, ele mesmo um ex-morador, nas 100 entrevistas organizadas na narrativa do livro.
;Eu tinha uma conexão com esse clima do Solar. Éramos todos jovens à procura de liberdade. Esse folclore chegou até mim quando ainda morava em Curitiba, pelos meus amigos que tinham passado por lá, como o Paulo Leminski. Era também clandestino, porque abrigava gente que estava na luta armada. Esse espírito sempre ficou em mim;, conta o jornalista que, há alguns anos, publicou biografias de Leminski e Torquato Neto, poetas que ajudaram a fazer a fama do apart hotel. As regras eram poucas. A preço acessível, exigia-se pagamento do aluguel a um mês do vencimento, a faxina ocorria diariamente e, semanalmente, roupas de banho e cama eram trocadas.
Contracultura
Toninho orgulha-se de ter conseguido reunir as peças de um ;mosaico daquela geração;. ;O tema rendia uma espécie de resgate da memória contemporânea brasileira;, acredita. Ali, no pátio gramado em frente aos apartamentos, o movimento estudantil e a tropicália (na música e no teatro) encontraram seus primeiros vultos, e de lá saíram para mudar a cultura nacional. A pesquisa dá conta de que pelo menos 15 canções foram compostas sob as luzes que rebrilhavam em varandas, janelas e cabeças pensantes.
Como nota Ruy Castro, locatário de um quarto aos 19 anos, em 1967, Caetano escreveu Alegria, alegria e Paisagem útil em seu ;apartamentinho; ; o cantor assim descreve seu canto no relato Verdade tropical. E Paulinho da Viola vibrou as cordas do violão com os primeiros acordes de Sinal fechado. Inquilinos e visitas discutiam literatura e política nos corredores. De vez em quando, jogava-se uma pelada nos espaços abertos. Já no correr do ano de 1968, os encontros reverberavam os desmandos políticos e a loucura revolucionária que começava a tomar as ruas. ;Uma efervescência inacreditável. O surpreendente é que ; e quem resume assim é Zé Rodrix ; aconteceu de várias pessoas de um mesmo interesse cultural se reunirem no mesmo lugar. E havia espaço para todos;, reflete Toninho.
O autor compara o Solar da Fossa com o Exploding Galaxy, uma comunidade artística organizada em Londres, pelo artista plástico filipino David Medalla, em 1967. ;Não pagavam aluguel e não tinha luz nem calefação. Era feito de pessoas díspares, atores de teatro, jornalistas, e gente comum também. Para morar lá, todos tinham que se enquadrar num projeto artístico e gerar peças de arte;, explica. A diferença: ninguém previu ou planejou a concentração de tanta gente criativa num lugar só. O Solar simplesmente aconteceu.
Leia trecho do livro
Os anos loucos
O ano de 1968 foi um divisor de águas ; não apenas no Solar, mas no mundo ocidental. Um fenômeno político urbano que tanto podia agitar as ruas do Rio de Janeiro, São Paulo ou Praga. Em todos os lugares onde havia um estudante e um sindicato ativo, respirava-se um clima de revolução civil, com o espocar de greves, protestos e conflitos. Em Paris, a situação não era diferente. O líder estudantil Daniel Cohn-Bandit, à frente de uma turba enfurecida, pregava ;a imaginação no poder;, uma vanguarda que tinha seu apreço no valor da própria juventude. O questionamento de velhos códigos (herança da Segunda Guerra) era uma tendência mundial. A Guerra do Vietnã, com a inédita cobertura da televisão, ampliava os clamores por paz e justiça no mundo.
No dia 16 de março, tropas americanas promoviam o famoso massacre de My Lai, matando 507 pessoas, a maioria crianças e velhos que foram fuzilados e amontoados numa vala comum. Nos EUA, os assassinatos de Martin Luther King, em 4 de abril, e do senador Robert Kennedy, em junho, além da insurreição do movimento Black Power, teriam a ressonância necessária para elevar a temperatura política e social.
No caso brasileiro, quatro anos de ditadura não tinham sido suficientes para definir um caminho (democrático) a seguir e não havia sinais de abrandamento. Pelo contrário, os direitos civis continuavam caindo feito pinos de boliche e os militares se encastelavam no poder graças a uma sucessão de atos institucionais que engessavam politicamente a nação. O recrudescimento estava para acontecer. Nesse sentido, o Solar, por abrigar muitos profissionais ativos em diversas áreas, podia ser considerado um termômetro da política. A julgar pelo movimento de entra e sai e pelas reuniões acaloradas em alguns apartamentos, estamos falando de um Rio 40 graus. Resumindo, 1968 era o Ano do Macaco, no horóscopo chinês, mas para muita gente foi também um ano do cão.
Esta era a realidade no país quando o capixaba Rogério Coimbra alugou um quarto com banheiro no Solar. Aos 21 anos, estava estudando Administração de Empresa na Fundação Getúlio Vargas, onde fazia política como membro do diretório estudantil. Não teve muita sorte com a nova morada: foi parar na ala de baixo, na Lapa, quase ao lado da tal oficina mecânica que, segundo ele, ;fazia um barulho infernal;. Ele morava sozinho e, certa vez, recebeu a visita da mãe, que passou para conhecer e avaliar o local onde o filho estava morando: ;Foi incrível! Minha mãe teve um derrame no olho enquanto
conhecia as instalações do Solar. Foi muito desagradável.; Rogério, que tinha a atriz Ítala Nandi como musa e objeto de desejo, guarda a lembrança da convivência com alguns vizinhos ilustres:
Tive o prazer de conversar algumas vezes com o Zé Kéti, que morava no andar de cima. Convivi também com Hélio Oiticica, que aparecia para encontrar os amigos baianos. Posso incluir nessa lista o Rogério Duarte , de quem herdei alguns discos e a namorada, Ângela de Andrade, com a qual me relacionei mesmo depois de ter saído do Solar. Outra amizade nascida nestes dias foi com o Ruy Castro, que, como eu, gostava de música e de jazz em particular. Tenho até hoje um disco do Clifford Brown/Max Roach Quintet que ele me emprestou e eu nunca devolvi.