O cabelo ouriçado do ator, diretor e dramaturgo Jonathan de Andrade é uma fonte de orgulho e identidade. Ele adora enfronhar as mãos pela vasta cabeleira estilo black power. Pelo fios, tece movimentos incomuns que, às vezes, servem de imagem para personagens que concebe. Como um Sansão, ostenta sobre a cabeça a força e a sedução que carrega no cotidiano. Até há pouco tempo, não era exatamente assim. Tudo estava engomado com gel, escondido e esticado. Reflexo da infância e adolescência, nas quais o cabelo, os lábios grossos e o nariz esparramado eram marcas visíveis de uma negritude incompreendida.
; Minha mãe é branca, meu pai, negro. Meu irmão mais velho saiu branco e loiro. O mais novo, mestiço. E eu, negro, chamado de buiú na escola, na vizinhança. Crescemos ouvindo piadinhas sobre a família. Diziam que eu era adotado, filho do padeiro, essas coisas.
A família inter-racial era motivo de estranhamento numa sociedade que se negava a compreender as suas raízes. Filho de um militar que saiu da favela Vigário Geral (Rio) para ascender na carreira, Jonathan rapidamente percebeu o peso do preconceito. Por vezes, sem entender direito o porquê ser tão apontado como diferente, desejou ter nascido como o irmão branco. A cabeça de menino não dava conta da barbárie diária do homem adulto.
; Estava na UnB, cursando artes cênicas, quando uma colega quis mexer no meu cabelo alisado por gel. Imediatamente, disse para ela não se atrever. Mas aí, com jeito, ela foi, molhou, pôs as mãos, mexeu e remexeu.
O cabelo cresceu aos olhos e as pessoas passaram a achar aquele negro lindo.
; Elas olhavam e diziam que tinha ficado ótimo. Hoje, é minha identidade, meu orgulho.
Sapatilhas atiradas
Com o RG no cabelo, Jonathan Andrade segue a vida como promissor artista da cidade. É coordenador pedagógico do curso de artes cênicas da Faculdade de Artes Dulcina de Moraes, dirige e escreve as histórias que deseja ver encenada no palco. Colhe, na arte, a liberdade de escolha que teve em família arejada. Foi o pai quem o incentivou a seguir a carreira artística. Percebeu que o filho tinha porte esguio de bailarino e o matriculou num curso de clássico. Mas não deu certo. Seis meses depois, o menino tinha arrancado as sapatilhas.
; Um dia, quando a gente morava no Suriname, eu assisti ao filme Mudança de hábito 2. Fiquei encantado e decidi que queria ser cantor. Ao voltar a Brasília, estudando no Colégio Militar, entrei no coral. Nesse meio-tempo, surgiu uma via-sacra e fui convocado para fazer o papel de Judas. Foi um sucesso.
Ouça Sandra de Sá interpretando Olhos coloridos
Judas mexeu com as convicções de Jonathan. Ali, ele viu o poder do teatro. Do sonho de ser cantor, o jovem passou a pensar fixamente na arte de atuar. Aí, os planos de uma possível carreira de diplomata no Instituto Rio Branco já tinham virado pó. A família, lógico, conformou-se. Até esse momento, Jonathan numa tinha lido um texto teatral. Fazia poesias. Foi firme para o teste de aptidão de artes cênicas na UnB e impressionou duplamente a banca de avaliadores. Primeiro, ao revelar que não tinha costume de ir ao teatro nem de ler as obras fundamentais a um bom aspirante. Depois, por interpretar, diante dos examinadores, Rosa, a personagem feminina de O pagador de promessas.
; Foi lá, na UnB, que percebi a possibilidade de me tornar dramaturgo. Havia uma estrutura de monólogos nas minhas poesias.
Premiado algumas vezes em editais de bolsas de dramaturgia da Funarte, Jonathan prepara-se para montar mais um texto: em setembro, estreia Terra de vento. Até lá, amplia parcerias, a exemplo do Teatro do Concreto, cujo espetáculo Entrepartidas, em cartaz até domingo, no CCBB, tem texto alinhavado por ele. O artista expõe em suas criações o que lhe move. Não há militâncias, nem uma defesa explícita a nenhuma causa. Só o desejo febril de fazer teatro. Aí guardem as bandeiras, porque Jonathan Andrade é sempre o protagonista de sua história.