Na cabeça do diretor de teatro Ricardo César, habitam dois orixás ; Oxóssi e Iansã. Não faz muito tempo que uma nova chefe de departamento da Secretária de Educação do GDF insultou a crença do homem que, desde menino, professa a fé nos deuses africanos que baixam nos terreiros e dançam entre os mortais. A mulher mandou retirar da repartição uma mandala de Exu, feita por alunos de escola pública do Gama e presenteada ao subalterno. Encaixotou a peça e despachou por um motoboy. O destino: a residência de Ricardo César. Não satisfeita, ela saiu pelos corredores querendo saber quem era capaz de desfazer uma macumba. Ao conseguir ajuda, ordenou que lavasse tudo com água, sal grosso, flores e orações. A ação asséptica feriu o babalorixá na alma.
; Quando vi, Oxóssi tinha pulado da cabeça e Iansã, tomado a frente. Aí, meu filho, se segure, que o pau quebra.
Ofendido, o brasiliense Ricardo César fez uma espécie de marcha pela justiça. Denunciou essa senhora às comissões de Direitos Humanos do Congresso Nacional e da Câmara Legislativa. Foi ainda ao Ministério Público. Cinco anos depois, continua depondo sobre o caso de preconceito racial e desrespeito à fé alheia. Custaram tempo e dinheiro, mas ele está firme em resolver a questão. Não só por ele, mas pelos alunos negros que enchem as salas das escolas públicas e por todos aqueles que formam o povo de santo no Brasil.
; É um ponto de honra. Mas estou firme. Não é fácil ser babalorixá. É uma responsabilidade muito grande. Estou erguendo um terreiro em Águas Lindas (GO). Meu maior sonho é abrir essa roça de Oxóssi e destiná-la também às atividades culturais. Costumo dizer que duas coisas me salvaram: o teatro e o candomblé.
Os dois ;salvadores; chegaram quase juntos à vida de Ricardo. Primeiro foi o candomblé. Na pacata cidade mineira de Pirapora, o garoto pisou no terreiro quando tinha 11 anos. Fugia de casa para cumprir a sina, enfrentando a fúria do pai, militar, que não queria o filho metido com essas coisas de caboclo. Na roça de Mãe Rosa de Nanã, que raspou a cabeça dele aos 17 anos, consagrava-se nos ritos.
; Naquela época, havia dois barulhos em Pirapora: a cachoeira de São Francisco e os tambores de Mãe Rosa. Não teve jeito de resistir porque, desde os 7 anos, Oxóssi já tinha me pegado, numa festa de Iemanjá que fui com Teresa, a empregada lá de casa. Entrei em transe.
O teatro veio logo em seguida, aos 12 anos, motivado pelo desgosto com a aula de educação artística, que o obrigava a desenhar, como se fosse um castigo. Um dia, chegou à cidade uma trupe teatral de Belo Horizonte para fazer oficinas de arte dentro de um vagão de trem. Quando soube da novidade, o menino pulou o muro e foi aprender o ofício. Com o trem em movimento, descobriu um novo mundo. Nasceu assim o grupo Canos e Silêncio, que peregrinou por cidades do Norte de Minas, e nunca mais a arte se desvinculou da vida dele.
; Quando completei 18 anos, fui para a Aeronáutica, no Rio. Lá, tinha um campo com palco montado. Queria fazer teatro ali, mas não havia chance. O ambiente militar não permitia. Quando chegava aos vestiários, sempre fazia uma performance. De uma hora para outra, surgia e recitava uma poesia.
O recruta esquisitão acabou pegando o rumo de Brasília. Saiu do quartel sem dinheiro para morar no Rio. O jeito foi atender ao chamado de uma tia que morava no DF. Brasiliense de nascença, Ricardo já nem se lembrava da terra natal. Ele foi embora da cidade pequeno, acompanhando as andanças do pai militar. Aqui, foi trabalhar como carregador de caminhões. O teatro e os orixás, no entanto, não saíam da cabeça. Um dia, viu um anúncio no jornal para teste numa peça. Foi, passou e se batizou no teatro brasiliense. Depois, entrou na Faculdade de Artes Dulcina de Moraes e abriu os caminhos.
; No início de Brasília, tudo era difícil. Não conseguia fazer teatro. Descobri, no convívio com a classe, o preconceito. Não era chamado para trabalhar porque não tinha perfil para o personagem rico nem para o galã. Quando caiu nas minhas mãos um proletário, achei que era a minha vez. Mas nada. Aí, resolvi fazer meus projetos. Hoje, já dirigi sete montagens e vejo que há um respeito em torno de mim.
Na semana que vem, Ricardo César estreia Vestida de mar, no Teatro Goldoni, com a amiga Gelly Saigg. De uma maneira sincrética, o teatro dele funde-se com o candomblé. Às vezes, de forma explícita (como na montagem Ajalá, o fazedor de cabeças); às vezes, discretamente, nos bastidores, em exercícios ritualísticos para compor o personagem
; Em Vestida de mar, Gelly vive a poeta argentina Alfonsina Storni, que se matou em Mar del Plata. Lá, tem um busto dela onde as pessoas põem flores. É uma Iemanjá dos argentinos. Tudo isso vai para o teatro. Não tem jeito.
Teatro negro no Brasil
; Assim como Ricardo César, que fugiu da escola e de casa para fazer teatro, o mineiro Grande Otelo descobriu a Companhia de Comédia e Variedades Sarah Bernhard, que passava pela cidade. Gostou de brincar de teatro e foi embora com o grupo, tornando-se ícone das revistas musicais.
; Aos 11 anos, Grande Otelo ingressou na Companhia Negra de Revistas, que estreou em São Paulo e excursionou por seis estados brasileiros. Caiu na boca da crítica e virou um fenômeno, ingressando na conceituada companhia de Jardel Jecolis, pai do grande ator Jardel Filho, e dono de uma das mais importantes revistas do país. Com Jecolis, viajou em turnê pela América Latina, Portugal e Espanha.
; Nos anos 1930, Grande Otelo virou uma estrela nacional, shows nos principais teatros, boates e cassinos brasileiros. Pôs o nome no letreiro do Cassino da Urca, tornando-se o primeiro astro. Atuou em shows ao lado de Carmen Miranda, Dercy Gonçalves e Josephine Baker. No cinema, contracenou com a dama do teatro Cacilda Becker.
; Versátil, Otelo gravou samba e foi para o rádio, o cinema e a televisão. Tornou-se um nome ligado ao sucesso de público, principalmente por misturar aos personagens, a malandragem e a ginga do sambista. Teve a genialidade reconhecida pela crítica graças ao personagem de Macunaíma (1968), de Joaquim Pedro de Andrade.