Nas páginas de Navegante ao léu (Semim Edições), de José Sóter, ou apenas Sóter, como ele prefere ser chamado, as palavras vagam como ;bilhetes de geladeira;. Como? ;Não tem um tema específico, fica ziguezagueando, sem ordem, de forma aleatória. É um agrupamento de textos. Mais do que poesia, são recadinhos, daqueles que você vai acumulando;, diverte-se o autor, nascido no município de Catalão (GO) e que vive em Brasília desde 1977.
Antes do fim dos anos 1970, idas e vindas marcaram sua relação com a nova capital do país. Aqui se fixou em 1959, 1969 e 1973. Em seu décimo sexto livro, ele tenta definir, em versos ágeis, colagens com recortes de poemas e fotos de personagens da sua geração (a do mimeógrafo, dos anos 1970), a ;alma brasiliense;. Sóter lança a obra hoje, às 17h, no Quiosque do Ivan Presença (Conic).
;Quis reverenciar esse processo de construção da alma brasiliense: pessoas importantes na minha concepção como poeta, a frase de um, a postura de outro;, conta. Com ilustrações de Zé Nobre, Sóter viaja no tempo e tenta reproduzir o espírito de uma época em que a cultura da cidade ainda desabrochava. ;A primeira referência foi justamente o movimento poético. Esse sentimento nasceu com os poetas marginais dos anos 1970 e depois inspirou tudo isso: manifestações ao ar livre, ocupação dos espaços, a música dos anos 1980, o teatro, as artes plásticas, o cinema. Todas as linguagens foram afetadas por essa tomada de atitude da poesia;, explica o escritor.
Arte cidadã
;Brasília não é maquete. Tem gente;, filosofa o autor. Sóter constrói a sua métrica da maneira mais espontânea possível. Ele leva consigo o descompromisso de um observador que não tem pressa, que tem o relógio como aliado: olha na direção do horizonte e não se angustia com a imensidão que os olhos mal dão conta de focalizar. Olha e apenas preenche o branco do papel com seus versinhos modernosos e profundos. ;Não há predisposição para escrever, por exemplo, sobre a maneira como a arquitetura de Niemeyer interfere no nosso cotidiano. Estamos apenas à disposição da cidade, e ela está à nossa disposição. É uma troca constante;, acredita.
O poeta tenta trazer de volta a ousadia de tempos passados, em que o regime militar ditava as regras e Brasília, uma cidade ainda jovem demais, que abria suas largas avenidas para a contribuição de gente de toda a parte. Para Sóter, a capital permanece assim: um mar infinito, onde é possível navegar livremente. ;Todo mundo que, digamos, ;aportou; aqui veio com essa concepção de viajar por novas propostas;, pensa.
Leia trechos do livro:
A nova mulher
quando chegar o seu tempo
de vida nova nas mãos
ela vai voar
para lugar distante
pois o seu horizonte
está por descortinar-se
e a sua vontade de mundo
não está satisfeita
as crias que a vida lhe der
serão páginas da história
que ainda está a escrever
e... quem participar dela
será apenas margem
de sua caminhada.
As havaianas dela
as sandálias havaianas
brancas com adereços de pavão
jazem no canto do banheiro
a lembrar a ausência dos pés
que a conduziriam até mim
olho-as cotidianamente ao banhar-me
e um holograma sempre se faz sobre
elas
;como um lençol branco
sobre móveis em imóveis abandonados;
ou... sobre o meu coração
Incompletude
sou um ser incompleto:
você é a minha completude
olho minhas limitações:
vejo-lhe completando lacunas
minha história sem você
são palavras em ordem alfabética:
sem razão de ser
Eu e a vida
a minha relação com a vida
sempre foi a de um leitor
mesmo quando me referencio em mim
o faço como espectador.
Guloseima
sempre que te olho ou ouço
meu coração bate-bate
que nem ovo pra fazer suspiro
e meus olhos ardem
como quando a gente
se esforça pra dormir