Jornal Correio Braziliense

Diversão e Arte

O cartunista Laerte fala sobre a arte de criar, o humor e a sociedade

Reflexão, humor, poesia e provocação. Um artista sem medo encara crises criativas e existenciais para avançar como criador. Dono de um trabalho rico tanto visualmente quanto por temáticas e abordagens, o cartunista Laerte Coutinho, 60 anos, faz das histórias em quadrinhos um espaço de inquietação constante. Além das tiras diárias, o quadrinista é conhecido pela série Piratas do Tietê e por incontáveis personagens e histórias publicados em jornais e revistas diversas nos últimos 30 anos. Valores, linguagens, preconceitos e o próprio trabalho são colocados em questão nas quatro linhas que delimitam os quadrinhos.

Convidado da 2; Jornada de Romances Gráficos, evento organizado na Universidade de Brasília (UnB) pelo Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, o cartunista esteve em Brasília na semana passada para uma palestra. O Correio promoveu um bate-papo entre o desenhista paulistano e a nova geração dos quadrinhos de Brasília. Participaram do encontro o trio Gabriel Góes, Lucas Gehre e Gabriel Mesquita, da revista Samba, e Caio Gomes, desenhista e cartunista do Correio Braziliense e um dos organizadores do calendário ilustrado Pindura.

Na conversa a seguir, Laerte lembra os tempos em que trabalhava com Angeli e Glauco Villas Boas (assassinado no ano passado) na série Los 3 amigos, a produção de quadrinhos no Brasil e no mundo, técnicas, morte de personagens, a preguiça de desenhar e, claro, vestir-se com roupas femininas (o hábito recebeu uma expressão em inglês chamada crossdresser). No fim, inverte-se a ordem e é o veterano quem questiona os iniciantes.

Góes: Que quadrinhos você está lendo atualmente?
Laerte: Quadrinhos têm esse problema de ser rápidos para caramba. Você leva dois anos fazendo e dois dias para ler uma graphic novels, por exemplo. Meu problema com Ken Parker são as 100 páginas por episódio. Eu conheço o Berardi (Giancarlo, roteirista da série italiana) e ele é louco mesmo. Ele trabalha algo em torno de 18 horas por dia; eu jamais trabalhei 14 horas por semana (risos).

Góes: Qual é a diferença da época em que você fazia tiras de personagem e o que você faz hoje?
Laerte: Ficou muito mais complicado porque com personagens é meio caminho andado. Já tem uma série de escolhas dadas pelas características do personagem. Por mais que ele evolua, uma série de coisas já estão resolvidas. Soluções que ele já aponta dentro de uma linguagem, que é da tira humorística. Quando eu encerrei esse pacote, encerrei personagens e modos de fazer a piada. Resolvi ir para um terreno novo e complicado.

Gehre: Às vezes nem é humor exatamente;
Laerte: É humor, não é piada. Humor e piada são coisas diferentes. Tem um festival em São Paulo de stand-up comedy chamado Risadaria que é muito bom. Já fui algumas vezes. Mas eu implico com o nome. Risadaria é a ideia do humor de festival assim como tinha o festival da canção. É humor com fórmula, fabril. Humor de resultado, como mecanismo de obter risada, não me agrada. Pode funcionar com um monte de gente. Mas me deu um siricutico com essa coisa. E nesse partir para outra tenho visto que muita gente opera com esse diapasão. Vocês (da Samba) fazem isso. O pessoal da revista Beleléu faz isso. Do meu ponto de vista, mudar foi uma saída para a minha sanidade. Eu estava me cansando da minha profissão, do meu trabalho, me repetindo, dizendo a mesma coisa muitas vezes.

Góes: Não dá saudade nenhuma dos seus personagens? Nenhuma mesmo?
Laerte: Não. Eles não eram pessoas reais. Não acredite em tudo que vocês veem por aí. Vocês têm saudade do Calvin (personagem de Bill Watterson)?

Góes: Direto, eu penso no Calvin.
Laerte: Esse é o problema de se trabalhar com personagens. São certos modelos que eu não ia alcançar. Eu tenho certeza de que nunca fiz nada como o Calvin. Aquela inteireza e densidade me fascinam. Conseguir uma tripinha com quatro quadrinhos por dia, com um personagem simples e previsível (boa parte do humor do Calvin é a expectativa satisfeita do leitor). Por outro lado, ele ia adensando situações. É exemplo de uma produção dinâmica de humor. Tanto é que o autor parou também. Na certa, por conta das limitações. Trabalhar com um personagem que não envelhece, num mundo em que o tempo não passa... Os comentários tinham de se ater a certos parâmetros. Já acho ótimo que ele não tenha vendido o personagem para o marketing. O fato do Watterson ter decidido parar já é um ponto a favor.

Mesquita: Quando você faz um quadrinho de mais de uma página, como você pensa tecnicamente?

Laerte: Isso tem saído cada hora de um jeito. Minha técnica varia muito. Às vezes, eu faço de lápis azul, boto a tinta em cima e filtro no photoshop. Essa crise que eu estou atravessando, ou que está me atravessando, colocou várias coisas em xeque. Uma delas foi o humor. A outra foi a minha capacidade de exercer a minha profissão de desenhista, tecnicamente, de nível. Vocês já devem ter percebido que essa p; exige uma certa disciplina, uma permanência. É uma relação de aficionado pelo próprio trabalho. E eu não consigo ter isso. Ando numa impaciência... É claro que uma história com mais de quatro páginas é uma piração. Cada história dessas, para ser parida, é uma loucura. Envolve ideias, estudos, desenhos. Eu não aguento mais esperar o roteiro sair para começar a história. Erro tudo. São marchas e contramarchas.

Mesquita: Aqui na Samba, às vezes um desenha e outro finaliza ou vice-versa. Na época em que você desenhava com o Los 3 amigos, vocês também faziam isso?

Laerte: Eu e o Angeli desenhávamos tudo. O Glauco só vinha para botar o bonequinho dele (o personagem Geraldão). Depois que ele descobriu que a gente desenhava o bonequinho razoavelmente, ele nem se dava ao trabalho de ir. Ficava lá um pouco, dava umas ideias muito loucas e ia embora. É gostoso fazer isso. Eu gostava bastante.

Caio Gomes: Quando você faz os quadrinhos, você pensa no que pode acontecer em relação à reação das pessoas?
Laerte: Eu já fui acusado de racista e homofóbico. Era uma tira que dois moleques ficavam questionando o que era gay ou lésbica. Evidentemente, minha intenção era discutir a linguagem comum. Aquilo que é passado para as crianças. Era uma história realista.

Caio Gomes: Você fica receoso por causa disso?
Laerte:
Fico. É um pouco pior do que receio. Fico pensando se eu não estou sendo isso ou aquilo. A gente sempre se acha o suprassumo do bom mocismo e da boa consciência. Eu, fascista? Imagina. Essas coisas frequentam a cultura pop, a cultura que a gente usa no bla-bla-blá diário de uma forma que é meio insidiosa. Essas coisas fazem parte de uma sopa geral, que você acha que não existe. Quando você vai examinar não é neutro p; nenhuma. É racista, classicista, sexista; Tem uma série de intenções embutidas em gestos aparentemente neutros. Eu sou um pouco neurótico. Eu fico pensando ;Que p; eu estou querendo dizer com isso?; Um pouco de paranoia minha. Neurose ou paranoia? Eu não sei (risos).

Caio Gomes: Você segue algum estilo de roupas femininas? Sei lá, olha nas revistas?
Laerte: Acho que é o que eu vejo na rua e gosto. No caso de roupa feminina é mais complicado porque eu não sou uma mulher. Já aconteceu de comprar uma roupa cara, colocar no corpo e pensar ;Que grande erro!”. Essa prática de usar roupa feminina é a importância da roupa enquanto linguagem. Estou tendo a oportunidade de verificar a linguagem no meu modo de ser. Um meio de expressão minha. Coisa que eu fazia de forma irrefletida com a roupa masculina. A roupa masculina tinha virado uma nãolinguagem. A roupa feminina me enriqueceu com essa oportunidade de experimentar linguagens.

Laerte assume a função de entrevistador:

O que é estar em grupo e ao mesmo tempo serem indivíduos produtores? Estar em grupo é apenas uma tática de existência do mercado? Quando é que vocês vão se largar?

Gehre: Estar em grupo na Samba foi meio instantâneo. É uma estratégia. Quando a gente viu, estava produzindo em grupo. Alguém perguntou se éramos um coletivo.

Mesquita:
Uma coisa boa de trabalhar em grupo é poder aprender. Acho que eu aprendo muito com o Lucas e o Gabriel. É bom até para ter referencial do seu trabalho e ter alguém te criticando de uma maneira até menos educada.

Laerte: Posso dizer o mesmo sobre a época do Los 3 amigos. Acho que o melhor do que eu fazia era o que eu fazia com eles.

Góes: Muita gente compara a gente com uma banda. Acham que uma hora a gente vai se separar e lançar um disco solo, independentemente da banda se desmanchar ou não.

Assista a vídeo de Laerte desenhando: