Jornal Correio Braziliense

Diversão e Arte

Fernandez, o voador, se apresenta e ensina a arte de ser trapezista

Um senhor se levanta da plateia indignado ao ouvir que o trapezista não poderia se apresentar naquela noite. De terno e gravata ele caminha até o palco e anuncia que vai subir no trapézio. Diante da incredulidade do público ele dispara: ;Pois eu vou mostrar que o velho aqui ainda sabe trepar;. A cena ocorreu no Teatro Dulcina, como parte de um dos espetáculos do FestClown de 2010. Desde então, o inusitado trapezista permaneceu afastado do grande público.

Aos 10 anos, o maranhense Miguel Fernandes sonhava ser piloto de avião. Um ano depois, o menino fugiu com um circo que se apresentava na cidade. Fernandes cresceu e virou Fernandez, o trapezista internacional que queria ser dono de circo. Hoje, o homem que completa 60 anos em setembro sonha em fazer acrobacias com uma asa-delta. Os sonhos mudam com os anos, mas todos eles têm em comum o desejo de voar. ;Se não fosse mitologia eu tinha certeza que sou a reencarnação de Ícaro;, acredita Fernandez. Desde que leu a história do grego que tentou fugir da cidade de Creta voando, o trapezista tenta viver o mito. ;Tudo que é perigoso é o meu fraco;, confessa. E suas tentativas rendem acrobacias no trapézio e boas histórias para contar. Quanto mais longe do chão maior é o prazer alcançado por Fernandez. Primeiro o telhado da casa de um padrinho, os muros do colégio, as árvores do jardim, e finalmente o picadeiro. ;Meu negócio é altura;, define.

Depois de percorrer Brasil, Chile, Argentina e Uruguai com várias companhias de circo, Fernandez chegou a Brasília em 1998 e se instalou em Valparaíso. Desde 2004, ele mora e confecciona toldos na Estrutural. Mas a vida de circense não parou por aí. É ao lado do lixão da cidade, sob a lona montada na Associação Viver, que o artista ensina crianças a fazer acrobacias no trapézio. Ele é um dos instrutores das oficinas realizadas pelo Circo Teatro Artetude, que fazem parte dos projetos Circo Escola Simpatia e Roda Vida o Circo.

Fernadez é trapezista há 49 anos. Ainda criança, ;o mais estudioso dos quatro filhos da família; fugiu com o Novo Circo Americano, que se apresentava em São Luís. Os pais tinham certeza de que o menino havia enlouquecido. ;Fiquei complexado porque minha família não aceitava. Quando eu me apresentava na cidade onde eles moravam, me escondia para que eles não me vissem;, explica.

Quando os pais e os irmãos se mudaram para Brasília, Fernadez perdeu-se totalmente deles. Doze anos se passaram até que o artista itinerante reecontrasse a família. Tudo graças a insistência da esposa Alba, moça de um povoado do Ceará que fugiu de casa aos 16 anos com o trapezista. Alba investigou e descobriu os telefones de uma das irmãs de Fernadez. ;Minha mulher era muito autoritária, ela me puxou pela orelha e disse: ;Agora tu vai falar com a tua irmã;;, o artista lembra com saudade da companheira. Alba faleceu em 2003, vítima de um câncer.

Trupe
Fernandez ensinou trapézio à mulher e ao cunhado e com mais um colega formou a trupe de trapezistas Os Ícaros. Em 1976 o grupo foi contratado por um circo alemão, o Ankenberg, que selecionava artistas no Brasil para uma turnê na América Latina. ;Dos bons não éramos os melhores, mas também dos ruins não éramos os piores;, brinca o artista. Três anos depois, de volta ao Brasil, Fernandez fez questão de escolher um bom circo. ;Eu era metido. Não trabalhava em companhia fraquinha. Eu ia lá para abraçar os amigos, mas só queria me apresentar em circo grande;, diverte-se. Em seguida, ele lembra um recente encontro com os antigos amigos durante um espetáculo do Cique du Soleil: ;Está todo mundo velho;.

O homem que se arriscou a vida toda no picadeiro tem trauma de futebol. Uma vez, em 1975, após uma partida, mesmo com um pé machucado Fernandez decidiu executar o seu número no trapézio. O resultado foi uma queda de 12 metros de altura, um braço e uma perna quebrados e quatro meses sem acrobacias. ;Nunca mais jogo! Quando não era o jogo, me machucava em alguma briga de futebol;, argumenta entre risos. A dor que até hoje ele sente no fêmur não o deixa esquecer.


; Dono de circo
; Seis meses depois de regressar ao país, o trapezista trocou os dólares e abriu o próprio circo, o Real Espanhol, que resistiu 10 anos, dirigido por Alba. ;E como deu dor de cabeça! O dia de mudança era uma dificuldade: era carro quebrando na estrada, leão nervoso com fome;, lembra. A doença da esposa fez com que Fernandez optasse por fechar o circo e trabalhar confeccionando lonas com um ex-aluno dele, que tinha uma fábrica em Brasília. Se sente saudades do circo? ;Como não? Era a minha vida, eu me sentia diferente com todo aquele povo pagando para me ver. Me sentia valorizado! Eu gostava do circo, mas gostava mais ainda da minha mulher;, emociona-se e completa: ;Sem ela, para mim, acabou. Ela dirigia tudo: o carro, o circo e a vida;.


; Busca de adrenalina
Fernandez estava em Governador Valadares (MG), quando viu pela primeira vez um voo de asa-delta. Fez amizade com os pilotos, distribuindo ingressos para o circo, até que surgiu a oportunidade de pular, em 1996. ;Minha mulher escondeu a roupa, os tênis e a chave do carro. Eu não discutia com ela porque sabia que estava errado, deixando ela preocupada. Mas eu não desisti;, conta. O trapezista foi até os fundo do circo, onde havia um velho carro Chevrolet Opala. Por meio de uma ligação direta, Fernandez saiu escondido e dirigiu rumo ao precipício dos voadores e voou com eles. ;Quando cheguei em casa, minha mulher veio me abraçar chorando. Nunca me esqueço do que ela disse: seu maluco, um dia tu vai me matar de medo com essas loucuras;, recorda.


Outro susto marcou a memória de Fernandez. Em 1887, no município de Castanhal (PA), o artista caiu da moto em um número de Globo da Morte. ;Caí e fiquei protegido pela moto, embaixo da bagunça. Um dos meus compadres se machucou e o sangue dele manchou a minha camisa branca;, explica. Todo mundo achou que Fernandez estava gravemente ferido. ;E eu fingi que estava desacordado para no dia seguinte lotar! Me colocam em uma Kombi do circo, e quando estávamos virando a esquina, rumo ao hospital, eu disse: pode voltar que eu estou bonzinho; (risos). Fernandez chegou a tempo de acalmar a esposa, que estava grávida. ;Cheguei dançando para ela ver que eu estava bem;, conta.


Prêmios
Troféu Sesc FestClown 2009: segundo lugar como trapezista.
Medalha em um festival de circo, em Santiago do Chile, em 1975


A carreira
1962
Novo Circo Americano
1975
Circo Bartolo
1976
Circo Orlando Orfei
1976
Circo Ankenberg (Alemanha)
1979
Circo Garcia
1988
Circo de Munique
1988
Circo Real Espanhol