A primeira imagem oferecida pela exposição Miragens ; Arte contemporânea no mundo islâmico, é uma mistura de violência e delicadeza. Um disco dentado de mais de um metro de diâmetro recortado com suras do Corão remete ao ponto de vista radical eventualmente utilizado para tratar do Islã. O trabalho do argelino Mounir Fatmi serve de aviso. Miragens passa ao largo da abstração. Apesar de uma mostra conceitual e contemporânea, não há necessidade de recorrer a análises subjetivas para compreender imediatamente do que tratam os trabalhos dos 19 artistas reunidos pela curadora Ania Rodríguez.
A violência, o papel da mulher e a tradição são temas evidentes na maioria das obras e pontuam o recorte curatorial de Ania. ;Todos os artistas têm origem no mundo islâmico e a exposição é o olhar deles sobre o mundo contemporâneo a partir dos conflitos gerados na sua própria identidade.; Produzida pelo Centro Cultural Banco do Brasil e em cartaz no Museu Nacional da República, Miragens funciona como um desdobramento de Islã ; Arte e civilização, que leva ao CCBB 12 séculos de história islâmica. ;As obras estão muito conectadas com tudo que está acontecendo no Oriente Médio, todas as tensões que a gente vê explodir estão representadas nesses artistas;, diz Ania.
O diálogo com a tradição aparece em boa parte das obras e está especialmente ligado ao uso da caligrafia, considerada a arte mais importante da cultura árabe. O inglês Shezad Dawood, filho de paquistaneses, comete uma ousadia ao fazer variações em néon com os nomes atribuídos a Alah. São 99 no Corão e Dawood se apropria de alguns em O doador, assim como a palestina Malileh Atnam utiliza a caligrafia para falar da condição feminina. A artista cobre com gazes pretas uma série de escritos de maneira a dificultar a leitura sem ocultar o texto. ;É um trabalho sobre as veladuras que cercam o mundo feminino na cultura islâmica;, avisa Ania.
Mais explícita, a série As mulheres de Alá, da celebrada iraniana Shirin Neshat, apresenta fotografias de mulheres com poemas escritos sobre diversas partes do corpo. São trabalhos bastante conhecidos no mundo inteiro e a caligrafia toma o espaço do sagrado ao se espalhar por mãos, rostos e pés. A condição feminina orienta ainda a obra da também iraniana Shadi Ghadirian. Mulheres com cabeças cobertas com o véu são fotografadas em cenários semelhantes aos de estúdios de época. No contexto aparentemente tradicional, Ghadirian insere objetos contemporâneos como o rádio ou um aspirador de pó.
Radicais
A violência é outro aspecto do qual tais artistas raramente escapam. O argelino Kamel Yahiouri trocou as teclas da máquina de escrever por balas em Os vigias, instalação em homenagem ao escritor Tahar Djaout, assassinado por radicais islâmicos. Nos quadros da palestina Laila Shawa, os grafites dos muros da Faixa da Gaza ganham interferências da artista e o lenço palestino, tradicionalmente associado à luta, serve para propor uma reflexão em Fashionista terrorista. ;O lenço entrou para o mundo fashion e com isso ele perde a simbologia e cai num universo semântico que torna difícil categorizar quem o veste;, observa Ania.
Às vezes, o humor também ganha espaço no comentário religioso. O turco Sener Ozmen não tem pudores ao se vestir de Super-Homem para rezar sobre o tradicional tapete e ainda propõe uma brincadeira irônica no vídeo O caminho para a Tate Modern, no qual assume ares de Dom Quixote ao cavalgar sobre um burrico em paisagem árida em busca da Meca das artes visuais. Khaled Hafez recorre ao deus Anúbis para comentar as camadas históricas que compõem a sociedade egípcia.
No vídeo, Anúbis passeia pelas ruas do Cairo e chama atenção para detalhes da paisagem. Em outro vídeo, Hafez coloca no mesmo quadro um homem de negócios, um religioso e um político. O artista esteve entre os intelectuais envolvidos na revolução pacífica que derrubou o ditador Hosni Mubarak em fevereiro e mantém ateliê em frente à Praça Tahir, epicentro da revolta. ;Vejo basicamente duas linhas nessas obras. Um diálogo entre a tradição e o contemporâneo e outro com o contexto social e político;, resume a curadora.
Miragens ; Arte contemporânea no mundo islâmico
Exposição de 19 artistas de origem islâmica. Curadoria: Ania Rodríguez. Visitação até 8 de junho, de terça a domingo, das 9h às 18h30, no Museu da República.