Jornal Correio Braziliense

Diversão e Arte

Versão brasiliense de tragédia grega está em cartaz na cidade

O mito de Medeia, tragédia grega escrita por Eurípedes cerca de meio século antes de Cristo, já inspirou artistas mundo afora, e continua rendendo matéria-prima para espetáculos. Uma das versões mais celebradas no país foi Gota d;água, escrita por Chico Buarque e Paulo Pontes, que adaptou o drama da mulher dividida entre o amor e o ódio a uma periferia urbana. Agora, o drama se muda para Brasília e seus personagens principais são moradores da Cidade Estrutural, lutando contra a miséria e a precariedade. Por um fio foi dirigida e adaptada por Jeff Moreira, fica em cartaz de hoje a quinta, às 20h, na Sala Martins Pena do Teatro Nacional Claudio Santoro, com entrada franca.

A heroína (ou anti-heroína?) é Valdete, costureira que abandona o marido mais velho para viver com João da Rima, cantor de rap e funk da comunidade, que faz sucesso com a música Por um fio. Tempos depois, ele acaba se envolvendo com Alma, a filha de Valdo Grileiro, um homem poderoso na comunidade. Abandonada, Valdete tenta todos os recursos possíveis para trazê-lo para perto. Derrotada, decide usar os filhos para chamar a atenção do homem que a abandonou. Serve comida envenenada às crianças e se mata também. ;Além da trama de Medeia, a peça acaba refletindo sobre a violência contra as mulheres, a dura realidade daquele lugar e sobre as relações de poder;, destaca a atriz Tereza Padilha, que vive Valdete.

A ideia da peça surgiu durante visitas à cidade, na tentativa de desenvolver um ponto de cultura no local. ;Há muitos anos, fiz uma montagem de Gota d;água e me apaixonei. Mas decidi contar a realidade da minha cidade;, conta Jeff Moreira. O processo envolveu visitas dos atores à área mais pobre da Estrutural, para assimilar o modo de andar, a fala e como pensam os habitantes. ;De cada 10 brasileiros, um é miserável. Precisamos mostrar essa realidade cruel, de fome, que eu não conhecia e percebo que a classe média também não conhece;, avalia Tereza Padilha.

Na versão brasiliense, o diretor decidiu brincar com alguns conceitos, como as diversidade social, cultural e de gênero. Moreira criou, por exemplo, um personagem homossexual que não existe no texto original de Eurípedes nem na releitura de Chico Buarque e Paulo Pontes. Na peça, Jeff vai explorar o aspecto sincrético. A personagem principal frequenta terreiros de macumba e sua melhor amiga é evangélica. Juntas, elas praticam ritos e compartilham crenças espirituais variadas. ;Por que o evangélico não pode caminhar lado a lado com o umbandista?;, questiona o diretor?;

Reproduzir o ambiente dos barracos, ruas sem calçamento e esgotos a céu aberto também exigiu um esforço de pesquisa. A cenógrafa e figurinista Cinthia Carla construiu um cenário com material reciclado: são caixas de madeira, cordas, andaimes, peças em sisal, pneus, tampas de privada, todos coletados do próprio lixão instalado no local e colados artesanalmente. A intenção de Jeff Moreira era criar uma peça multifacetada e intensa. ;A internet deixa a cabeça das pessoas mais rápidas. Botei música ao vivo, drama, comédia, brigas. Imaginei que seria uma escola de samba, que passa e arrebata as pessoas;, justifica Jeff.

Música

A trilha sonora também recebeu atenção especial. Desde fevereiro, os atores fazem oficinas de preparação vocal com Toronto Viramundo, integrante da banda Os Cachorros das Cachorras, para cantar ao vivo. Viramundo, que assina a direção musical do espetáculo, também fez novas versões para canções conhecidas. Basta um dia, da trilha original da peça de Chico Buarque, é executada com atabaques e violão. Águas de março e Cordeiro de Nanã também estão na trilha, além de rock, rap e funk.

Por Um Fio

Espetáculo adaptado e dirigido por Jeff Moreira. De hoje a quinta-feira, às 20h, na Sala Martins Pena do Teatro Nacional Claudio Santoro (Via N2 ; 3325-6240). Entrada Franca. Não recomendado para menores
de 16 anos.