Foram cinco anos de elaboração do roteiro, seleção e treinamento de atores. Rotinas de difícil conciliação, falta de grana, gentilezas da vizinhança e uma dedicação ferrenha às horas infindáveis de filmagem, que tomaram 52 dias espalhados ao longo de um ano. Mas um grupo de artistas de Samambaia já pode anunciar aos quatro ventos: acaba de ficar pronto o primeiro filme produzido, rodado (e tão sonhado) na cidade. E a população vai ter o privilégio de assistir a Periférico 304, com roteiro de Geraldo Lessa e direção de Paulo Z. ;Temos essa quitação de dívida com os moradores. Eles têm o direito de ver primeiro. Afinal, abriram suas casas, deram pão e até dinheiro para a produção;, reconhece Paulo Z, o idealizador da empreitada. A partir do dia 19, a obra será apresentada em escola e biblioteca da cidade.
A história de Geraldo Lessa e Paulo Z gira em torno de um casal que vive em Samambaia com os quatro filhos, até que dois deles morrem: um sofre um acidente e o outro é assassinado em uma briga de rua. A viúva do acidentado, gravemente ferida, fica presa a uma cadeira de rodas. O algoz do rapaz espancado é preso, cumpre pena e, anos depois de sair da cadeia, conhece e se apaixona pela irmã do jovem que matou. O título Periférico 304 faz referência à quadra onde fica a escola, já que a maioria dos personagens frequenta aulas no local.
Quando decidiu fazer seu primeiro filme, um longa-metragem, Paulo Z, professor de teatro do Centro de Ensino Médio 304 de Samambaia, nem imaginava a comoção que o trabalho causaria. ;Era muito material humano. Meus alunos tinham a mesma vontade;, conta. Encomendou o roteiro ao amigo Geraldo Lessa, que entregou a versão final em quatro meses. ;Moro no Guará e não conhecia bem Samambaia, mas Paulo me deu orientações. As situações são as mesmas em qualquer periferia;, revela.
Enquanto a história de seu filme estava sendo alinhavada, Paulo Z decidiu recrutar, entre a própria comunidade de Samambaia, os intérpretes para a trama. Foi aí que surgiu o ator, professor e produtor cultural Josuel Júnior, que mora na cidade e ouviu o burburinho da vizinhança. Juntos, eles abriram inscrições para estudantes se submeterem aos testes. Diante da fila de 300 pessoas que se formou na escola, permitiram que todos os interessados tentassem um papel. Depois de dois dias de audições ininterruptas, a dupla selecionou um elenco diversificado de 30 pessoas, de estudantes a donas de casa, independentemente da experiência com a arte de atuar.
Com o elenco definido, era preciso preparar os atores para encarar a câmera. A produção decidiu ministrar uma oficina teatral de seis meses, com exercícios cênicos, de preparação física e até um intensivo de desinibição diante das lentes, processo que incluía aulas filmadas e exibidas ao vivo. Durante dois meses, o grupo se subdividiu em dois e trabalhou em turnos separados, um de manhã e o outro à tarde. Por mais quatro meses, os aspirantes a atores trabalharam juntos.
Antiga aluna do professor Paulo Z na escola da 304, Luana Vieira, 22 anos, lembra-se com saudades da experiência. ;Ouvi falar dos testes, sempre tive vontade de atuar e não deixei a chance escapar;, conta. Sua aposta rendeu frutos melhores do que esperava: ela acabou ganhando um dos papéis principais do filme, o de filha de Eugênia, a matriarca da família. Para dar conta do recado, precisou vencer o nervosismo e a timidez que as lentes do cinegrafista lhe causavam. ;O papel me ajudou muito. Hoje, quando apresento trabalhos na faculdade e fico nervosa, respiro fundo, me concentro nos exercícios que fazia e me solto;, revela a estudante de enfermagem.
O começo das gravações trouxe um problema de logística: o cinegrafista, responsável por registrar boa parte das cenas, trabalhava em uma empresa de filmagem de casamentos e só podia se dedicar ao projeto se estivesse com a agenda livre. Uma empresa do ramo também emprestava equipamentos, como o microfone direcional, desde que o material estivesse disponível. A todos esses entraves, somava-se a disponibilidade do time escalado para atuar na produção. A técnica de enfermagem Tânia Barros, 51 anos, atriz que viveu Eugênia, também tem boas recordações desse período. ;Sinto falta das trocas de roupa, das maquiagens, de todo mundo colaborando. Nos almoços, cada um trazia uma comida de casa;, relembra.
Quem não ganhou um papel no enredo pôde ajudar na confecção de figurinos, na técnica e na figuração. Os que entendiam de maquiagem ensinavam aos colegas. Os especialistas em eletricidade respondiam pela iluminação. Sempre que essa força-tarefa tomava as ruas para rodar o filme, ganhava em troca a solidariedade dos comerciantes e moradores da região. ;Muita gente nos perguntava se podia nos ajudar de alguma forma. Um supermercado chegou a doar pães para toda a equipe;, destaca o diretor.
A meta é ousada: levar as histórias e personagens da cidade a 1 milhão de espectadores. Se cada um dos cerca de 200 mil moradores de Samambaia prestigiar a produção e se for confirmado o acordo, atualmente em análise na Secretaria de Educação, de exibir o filme para os alunos da rede pública de ensino, o plano não soa impossível. ;Sabe nos anos 1930, quando descobriram que Hollywood era incrível? Samambaia pode ser também. É uma cidade plana, com horizontes maravilhosos, além de ser um centro cultural. Aqui temos tradições como a quadrilha de São João e a Paixão de Cristo Negro;, exemplifica Paulo Z.
PERIFÉRICO 304
A primeira sessão será no dia 12 próximo, às 19h, no auditório do Instituto de Ensino Superior de Brasília (Iesb), instituição que editou e finalizou o filme. Nos dias 19 e 20,também às 19h, o filme será exibido no Centro de Ensino Médio (CEM) 304 de Samambaia. De 12 a 16 de junho, às 19h, entra em cartaz na Biblioteca Pública de Samambaia e no Centro de Criatividade Infanto-Juvenil (CCI), na QN 401.